quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A Catedral Verde. João Aguiar. «Retomo o lugar que ocupava, em sua frente. - Desculpe. Já não sei o que estava a dizer. Ela sorri. - Não estava a dizer nada, porque eu ainda não tinha feito uma nova pergunta, que aliás vai ser a última, já tenho material que chegue. O que faz, neste momento? Vai sair em breve um novo livro?»


(1943-2010)
Lisboa
jdact e cortesia de joaquimsousa

Liturgia Secreta
«Por estranho que pareça na minha idade, eu ainda tenho, por vezes, alguns sonhos que não são pesadelos. O facto de os ter quando me encontro em estado de vigília (refiro-me, evidentemente, aos sonhos bons ou neutros; os pesadelos, esses, não escolhem estado) não prejudica a sua qualidade onírica nem o seu absurdo. Por exemplo, sonho muitas vezes com um mundo onde os heróis podem cavalgar sobre pradarias limpas e em florestas densas regadas por chuvas tépidas, que antes de caírem não colheram na atmosfera os vómitos gasosos das chaminés da indústria.
Um mundo, por falar em indústria, onde só são possíveis as actividades económicas que, independentemente dos discursos e da publicidade, sirvam para manter e fortalecer a vida, não para a destruir.
(Estou a falar de sonhos, insisto. Ainda assim: será grave, na minha idade?)
Um mundo onde a magia é real e não uma habilidade de palco e repousa nas mãos de sábios compadecidos. Eu sonho, e julgo que sempre sonhei, com um mundo, não perfeito, mas onde a perfeição pode ser apercebida. E onde as orações não se dissolvem no ar como se nada mais fossem que palavras. Eu sonho como se fosse um rapazinho cuja voz ainda não sofreu a mudança da adolescência.
E, quando regresso do sonho, o rapazinho desaparece e a minha voz está rouca de tabaco. De tabaco e, hoje, de chuva. Chuva. É o dilúvio absoluto, daqueles que abrem torrentes de lama e fazem cascatas de água suja e enchem a transbordar as sarjetas entupidas e trazem à rua os bombeiros para agravar os engarrafamentos.
A cidade jaz abafada em chuva e em cinzento, nem os anúncios luminosos conseguem dar-lhe (emprestar-lhe, digamos) um pouco de cor. Detesto o tempo de chuva na cidade.
As cidades deviam ter microclimas secos: choveria o estritamente necessário para lavar o ar, lubrificar as sarjetas e ajudar a rega das zonas verdes, nada mais. No campo é muito diferente. Em Vale de Monges, sou capaz de ficar tempos esquecidos a ver chover. Aí, a chuva oferece-me dias diferentes dos outros, com uma beleza diferente e muito sua, sons e perfumes muito seus. Por que raio não estou eu em Vale de Monges, por que raio estou eu aqui?
A cidade, repito-me, jaz cinzenta, aos meus pés. Mas isto não quer dizer que eu a domine; é antes um simples pormenor de localização e, de resto, o trono de onde eu a vejo é emprestado: o João Carlos arranjou este nono andar quando precisou de mudar de casa por vias do divórcio; o nono andar é seu e não meu.
Suponho que a vista é bonita em dias de sol. Porém, hoje não há nada que resgate esta imensidão de cinzento e de cimento. E se me debruçasse um pouco, o que não faço, veria o rio estagnado de carros imobilizados na rua, sem esperança de libertação próxima. Como não me debruço, porque está a chover mas também porque não gosto de olhar para baixo, a pique, só ouço a cacofonia impotente das buzinas, que se junta ao ruído um pouco mais discreto das gotas de chuva a martelar o vidro. Não é o mesmo som da chuva em Vale de Monges; esse é fresco e como que rendilhado, enquanto este é furioso e cheira, se é que um som pode cheirar., a engarrafamento e frustração.
Ainda assim, mal por mal, prefiro enfrentar aqui a provação da entrevista a fazê-lo numa Redacção. O que vem recordar-me: deixei, provavelmente, uma pergunta sem resposta. Volto as costas à janela, dou uns passos, olho novamente para a rapariga. Admito que gosto do que vejo. Cabelo alourado, olhos verdes de esmeralda pálida, um corpo esbelto, sem contornos exagerados, que se move com uma graça natural. Põe o maior cuidado em parecer descuidada; em fazer-nos crer que só olha para o espelho de passagem, sem parar e que não tem a consciência da sua própria beleza física ou não lhe concede importância.
O que, muito claramente, é falso, mas acho graça a este jogo.
Retomo o lugar que ocupava, em sua frente. - Desculpe. Já não sei o que estava a dizer. Ela sorri. - Não estava a dizer nada, porque eu ainda não tinha feito uma nova pergunta, que aliás vai ser a última, já tenho material que chegue. O que faz, neste momento? Vai sair em breve um novo livro?


A minha cara, sei-o há muito, é o reflexo fiel do meu pensamento, o que significa: trai-me constantemente. É o que sucede agora, porque a rapariga acrescenta logo a seguir: - Bem sei, há-de estar farto de ouvir isto, é a pergunta estafada que toda a gente lhe faz. Mas ao mesmo tempo é inevitável, não acha?
Pelo contrário, é perfeitamente evitável, penso eu, enquanto, com grande sinceridade, respondo que me encontro parado, à espera de uma ideia. Não falo, porque não vale a pena, da discreta angústia que essa espera me causa». In João Aguiar, A Catedral Verde, (A Crónica de Santo Adriano), ASA Editores, Porto, 2006, ISBN 972-41-2412-6.

Cortesia de ASA/JDACT