Por tudo isto, Dinis I é sem dúvida um poeta com uma voz própria, e este
facto terá levado a que a sua extensa produção tivesse, presumivelmente, sido
recolhida em volume próprio, que terá feito parte da Biblioteca do rei Duarte,
onde se encontra referenciado. Morreu em Santarém, em 1325, mas a sua fama não
morreu com ele, sendo a sua qualidade de poeta referida, entre outros, por
Camões e António Ferreira, no século XVI; mas já antes deles, Dante e o Marquês
de Santilhana o colocam entre outros nomes de relevo na poesia medieval.
A voz humana
A voz feminina que se exprime nas Cantigas
de Amigo corresponde a uma relação homem-mulher que se baseia numa
cumplicidade nascida do facto de que, entre ambos, o amor supera as
conveniências sociais. É talvez uma mulher casada que diz:
‘Bem entendi, meu amigo,
Que mui gram pesar ouvestes
Quando falar nom podestes
Vós noutro dia comigo’
A amada não hesita em desafiar esses condicionalismos, servindo-se de
processos como os recados, através de amigas ou da própria mãe, para chegar até,
ao amigo. Muitas vezes, o poema nasce numa situação de ausência do amado: ou por
ter ido com el-rei ou numa expedição guerreira. É a situação de quem fica, com
a soidade
do amado, que o poema retrata, acentuando o lado confessional e, ao mesmo
tempo, fazendo ecoar a pureza da voz que se lamenta.
Neste diálogo, surge por vezes uma atitude de desagrado, como a que resulta
da incredulidade perante as profissões de fé amorosas do amigo:
‘Vós, que em vossos cantares meu
amigo chamades, creede bem
que nom dou eu por tal enfinta rem’.
Mas esta atitude talvez resulte do modo adoptado para essa confissão, o
poema, sem dúvida suspeito, pelo facto de transportar códigos e artifícios que
lhe retiram toda a sinceridade. Não surpreende, por isso, que o amigo tenha de
recorrer à mãe para que esta use os seus bons ofícios de alcoviteira:
‘Roga-m’hoje, filha, o voss’Amigo
Muit’aficado que aos rogasse
que de vós amar nom vos pesasse’.
Neste, pequeno, mundo de amores secretos surgem, entretanto, intrigas,
próprias do meio palaciano:
‘Amiga, sei eu bem d’uma molher
que se trabalha de vosco buscar
mal a vos’amigo po-lo matar’.
Mensagens, recados, diálogos, confidências, choros e rogos: estamos aqui
num universo carregado de emoção, numa amplitude que vai da credulidade mais
ingénua no sentimento do outro até à ira resultante da suspeita de perjúrio, ou
da traição, em que a falta à palavra dada corresponde a um dos crimes mais
graves dentro do código da honra feudal.
O amor é, sem dúvida, a causa de todo este clima; e o facto de a ele ser atribuído a perturbação dos amantes remete-nos para um universo de loucura, de perda do sem, na linha do filtro amoroso bebido por Tristão e Isolda que os colocou à margem da sociedade, levando mesmo ao desabafo: ‘mais nos varria de nos matar’. A perda da razão social vai pôr, então, o marido numa situação de inimigo, objecto de insultos: irado, mal bravo, sanhudo, esquivo.
O conjunto das oito cantigas paralelísticas, em que a linguagem se depura
deixando ver o amor na sua expressão mais lírica, despida das convenções de
género, dá-nos toda a medida da percepção do amor feminino pelo poeta». In D. Dinis, Cancioneiro,
colecção dirigida por Vasco Graça Moura, organização, prefácio e notas de Nuno
Júdice, Editorial Teorema e Nuno Júdice, 1997, ISBN 972-747-684-8.
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