O Portugal contemporâneo de Júlio Conrado
«Este retrato desenganado parece no livro de Conrado menos uma
enfermidade do Portugal contemporâneo, daí a presença das imagens mediáticas do
11 de Setembro de 2001 na trama do romance, que um sintoma do espectáculo vazio
da contemporaneidade. Este, tocando todas as sociedades globalizadas do
Ocidente, organiza-se por isso em Júlio Conrado numa pirâmide que vai buscar a
sua imagem maior, aquela que lhe confere significado simbólico universal, ao
tráfico de droga. Na base estão os pequenos passadores, filhos ao deus-dará de
famílias desfeitas, com os vitupérios sonoros da rua, como no seu topo estão os
comendadores e os políticos, agraciados pelo destino ou pela moral, sentados em
confortáveis e discretas poltronas, mas cujo negócio principal é também o
comércio clandestino do oiro branco em pó.
A certa altura do romance convoca-se a frase de um escritor francês do
século passado que no rescaldo dos primeiros anos de uma sociedade que tinha no
consumo o seu tipo apontou a dormência social que aí despontava como o
resultado dos ‘tempos cobardes da democracia’. É este o pesado letreiro de
ferro que Júlio Conrado coloca por cima da sociedade portuguesa actual,
ilustrando-o com a crueza das suas histórias e o sarcasmo dos seus motivos.
Seja como for, com este romance, mesmo atendendo a certas fragilidades
na construção da intriga, Júlio Conrado mostra que sabe desenhar sob as linhas das
suas frases a sociedade portuguesa das duas últimas décadas, apresentando-se
assim a sua literatura como um contributo adiantado e nada desprezível para o
conhecimento perspectivado ou aproximativo dessa realidade, sendo esse decerto
o seu melhor galardão, já que não pode haver regeneração dos vícios sem
entranhada consciência deles.
Nesse sentido, Conrado é um escritor realista mas é também um prosador
moralista, mais austero que sarcástico, que pretende através da acusadora
pintura de realidades sombrias aperfeiçoar a sociedade por um acréscimo de
beleza moral.
Talvez por isso Urbano Tavares Rodrigues, logo em 1969, tenha dito a
propósito da arte de Conrado estas palavras que ainda hoje, em última visão, se
mostram certeiras na compreensão da sua intenção, ‘o seu propósito não é contar a vida, é modificá-la’». In António
Cândido Franco, Querido Traficante, O Portugal contemporâneo de Júlio Conrado,
Enfoques, Jornal de Letras, Maio de 2007.
In Júlio Conrado, De Tempos a Tempos, Antologia pessoa, Enfoques, Antologia
crítica, Roma Editora, 2008, ISBN 978-989-8063-32-8.
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