sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Memorial do Convento. José Saramago. «O Dia do Desassossego é uma chamada de atenção. Somos seres pensantes e queremos viver enquanto tal. Não somos massa, nem um número, nem uma estatística, e muito menos um rebanho dirigido. Somos homens e mulheres capazes das maiores proezas, incluindo a de sorrir em tempos sombrios, porque decidimos que ninguém nos gela o sangue nem nos corta a respiração»


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José Saramago, que deu à literatura portuguesa o único Nobel, é um bom exemplo daquilo que vale a união entre dois povos. Em Espanha Saramago é tão lido como em Portugal. A sua morte foi tão sentida como em Portugal. Quem um dia escrever a sua história vai ter que falar da criança pobre que nasceu num pequeno povoado junto ao Tejo, num lugar onde “a terra é plana, lisa como a palma da mão”, e que a meio da vida conseguiu o que até hoje nenhum português havia conseguido: conquistar a Espanha e os espanhóis’. In Joaquim António Emídio, Jornalista, Chamusca, Ribatejo.


«Calaram-se os homens, indignados, das freiras não se ouvia agora um suspiro, e Sete-Sóis declarou, Na guerra há mais caridade, A guerra ainda está uma criança, duvidou João Elvas. E não havendo mais que dizer depois desta sentença, puseram-se todos a dormir.

Dia do Desassossego
Escrevo para desassossegar, não quero leitores conformados, passivos, resignados”, disse José Saramago pelos cantos do mundo e, pela última vez, na apresentação de “Caim”, para muitos mais do que um romance, um grito para romper com a indiferença. Nunca a sociedade precisou tanto de seres humanos desassossegados, capazes de mostrar colectivamente a inquietação e, a partir dela, elaborar alternativas que nos devolvam a racionalidade. O Dia do Desassossego é uma chamada de atenção. Somos seres pensantes e queremos viver enquanto tal. Não somos massa, nem um número, nem uma estatística, e muito menos um rebanho dirigido. Somos homens e mulheres capazes das maiores proezas, incluindo a de sorrir em tempos sombrios, porque decidimos que ninguém nos gela o sangue nem nos corta a respiração. “Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo”, escreveu Ricardo Reis-Fernando Pessoa. E José Saramago mostrou-lhe esse espectáculo no ano da sua morte porque sempre soube que contemplar é um passo necessário, mas o segundo, tão urgente hoje como em 1936, é intervir, antes que intervenham sobre nós. Como pessoas, como culturas, como países. Neste Dia do Desassossego, quando José Saramago faria 90 anos, contemplemos o espectáculo do mundo pela sua mão. Caminhemos com “O Ano da Morte de Ricardo Reis” pelas ruas de Lisboa e, em cada esquina descrita, paremos para pensar, de cabeça levantada. Somos cidadãos desassossegados, gente que pensa e tem coração para sentir a força da beleza, da bondade e dos argumentos. Saiamos à rua neste 16 de Novembro, desassossegados mas não vencidos, com as nossas capacidades despertas, a nossa sensibilidade afinada, seres de palavras, de memória e de gratidão. O desassossego será uma forma de romper todos os cercos. In A Fundação.


D. Maria Ana não irá hoje ao auto-de-fé. Está de luto por seu irmão José, o imperador da Áustria, que em pouquíssimos dias o tomaram as bexigas, verdadeiras, e morreu delas, tendo somente trinta e três anos, mas a razão por que ficará no resguardo dos aposentos não é essa, muito mal andariam os Estados quando uma rainha afracasse por esse pouco, se para tão grandes e maiores golpes são educadas. Apesar de já ir no quinto mês, ainda sofre dos enjoos naturais, que, no entanto, também não bastariam a desviar-lhe a devoção e os sentidos de vista, ouvido e cheiro da solene cerimónia, tão levantadeira das almas, acto tão de fé, a procissão compassada, a descansada leitura das sentenças, as descaídas figuras dos condenados, as lastimosas vozes, o cheiro da carne estalando quando lhe chegam as labaredas e vai pingando para as brasas a pouca gordura que sobejou dos cárceres. D. Maria Ana não estará no auto-de-fé porque, apesar de prenha, três vezes a sangraram, e isso foi-lhe causa de grande debilitação, em acréscimo dos afrontamentos de que vinha padecendo há muitos meses. Demoraram-lhe as sangrias como lhe tinham demorado a notícia da morte do irmão, que queriam os médicos segurá-la mais, sendo de tão pouco tempo a gravidez. Que, em verdade, os ares não andam bons no paço, como ainda agora se averiguou ao dar a el-rei um flato rijo, de que pediu confissão e logo lha deram, pelo bem que sempre faz à alma, mas terão sido imaginações suas, que tudo se desatou num bom sucesso quando o purgaram, afinal era só a tripa empedernida. Está o palácio triste, sobre a tristeza em que de costume está, com o luto que el-rei mandou dar a toda a sua casa, e ordem para que os títulos e oficiais dela o pusessem, como ele pôs, fechando-se oito dias e tomando seis meses de nojo, três de capa comprida e três de capa curta, por demonstração do grande sentimento da morte do imperador seu cunhado.
Porém, hoje é dia de alegria geral, porventura a palavra será imprópria, porque o gosto vem de mais fundo, talvez da alma, olhar esta cidade saindo de suas casas, despejando-se pelas ruas e praças, descendo dos altos, juntando-se no Rossio para ver justiçar a judeus e cristãos-novos, a hereges e feiticeiros, fora aqueles casos menos correntemente qualificáveis, como os de sodomia, molinismo, reptizar mulheres e solicitá-las, e outras miuçalhas passíveis de degredo ou fogueira. São cento e quatro as pessoas que hoje saem, as mais delas vindas do Brasil, úbere terreno para diamantes e impiedades, sendo cinquenta e um os homens e cinquenta e três as mulheres. Destas, duas serão relaxadas ao braço secular, em carne, por relapsas, e isto quer dizer reincidentes na heresia, por convictas e negativas, e isto quer dizer teimosas apesar de todos os testemunhos, por contumazes, e isto quer dizer persistentes nos erros que são suas verdades, só desacertadas no tempo e no lugar. E estando já passados quase dois anos que se queimaram pessoas em Lisboa, está o Rossio cheio de povo, duas vezes em festa por ser domingo e haver auto-de-fé, nunca se chegará a saber de que mais gostam os moradores, se disto, se das touradas, mesmo quando só estas se usarem. Nas janelas que dão para a praça estão as mulheres, vestidas e toucadas a primor, à alemoa, por graça da rainha, com o seu vermelhão nas faces e no colo, fazendo trejeitos com a boca em modo de a fazer pequena e espremida, visagens várias e todas viradas para a rua, a si próprias se interrogando as damas se estarão seguros os sinaizinhos do rosto, no canto da boca o beijocador, na borbulhinha o encobridor, debaixo do olho o desatinado, enquanto o pretendente confirmado ou suspirante em baixo se passeia, de lenço na mão e circulando a capa. E sendo o calor tanto, vão-se refrescando os assistentes, com a conhecida limonada, o geral púcaro de água, a talhada de melancia, que não seria por irem morrer aqueles que se consumiriam estes». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT