Vontade natural
«A grande diferença entre as células que se encontraram nos organismos
multicelulares, ou metazoários, e as células isoladas têm de se bastar a si próprias,
as células que constituem o nosso organismo vivem em sociedades extremamente
diversas e complexas. Muitas das tarefas que as células dos organismos unicelulares
têm de desempenhar sozinhas são atribuídas a tipos especializados de células
nos organismos multicelulares. No entanto, a organização geral é comparável à
atribuição distinta de papéis funcionais que cada célula individual incorpora
na sua própria estrutura. Os organismos multicelulares são compostos por
múltiplos organismos unicelulares organizados de forma colaborativa, algo que
teve origem na combinação de organismos individuais ainda mais reduzidos. A
economia de um organismo multicelular apresenta inúmeros sectores e as células
que compõem cada um desses sectores colaboram entre si. Se tudo isto parece
familiar e leva o leitor a pensar nas sociedades humanas, tem toda a razão. As
semelhanças são espantosas.
A regência do sistema de um organismo multicelular é extremamente
descentralizada, embora apresente centros de liderança com poderes avançados de
análise e decisão, como, por exemplo, o sistema endócrino e, claro está, o
cérebro. Mesmo assim, com raras excepções, rodas as células dos organismos
multicelulares, incluindo o nosso, têm os mesmos componentes de um organismo
unicelular:
- membrana, citoesqueleto, citoplasma e núcleo, os glóbulos vermelhos, cuja breve vida de cento e vinte dias é dedicada ao transporte de hemoglobina, são a excepção, pois não possuem um núcleo.
Além disso, todas essas células apresentam um ciclo de vida semelhante,
nascimento, desenvolvimento, envelhecimento, morte, ao de um organismo
complexo. A vida de um organismo humano é composta por multitudes de vidas
simultâneas e bem articuladas. Por mais simples que tivessem sido e continuem a
ser, as células isoladas tinham o que parecia ser uma determinação decisiva e
inabalável em permanecer vivas enquanto os genes no interior do seu núcleo
microscópico assim o ordenassem. A regência da sua vida incluía uma insistência
obstinada em existir e prevalecer até que alguns dos genes do núcleo
suspendessem essa vontade de viver e permitissem que a célula morresse.
Sei que é difícil imaginar que os conceitos de ‘desejo’ e ‘vontade’
possam ser aplicáveis a uma célula única e isolada. Como podem estas atitudes e
intenções, que normalmente associamos à mente humana consciente e que intuímos
serem o resultado do funcionamento do grande cérebro humano, estar presentes a
um nível tão básico? Mas o facto é que estão, seja qual for o nome que
queiramos atribuir a essas características do comportamento da célula». In
António Damásio, O Livro da Consciência, Temas e Debates, Círculo de Leitores,
2010, ISBN 978-989-644-120-3.
Cortesia de Temas e Debates/JDACT