«Não era necessário usar da força para executar esta ordem; já o terror
tinha tornado imóveis os dois miseráveis. Bem viam que o terrível estrangeiro
não gracejava com eles. Entretanto, de toda a parte, no dilatado firmamento,
cintilavam as estrelas no fundo do azul espaço, e nem uma pinga só de chuva
caía do céu, onde passava a Lua em toda a sua majestade. Patrício estava
calado, resolvido a fazer uma confissão sincera de tudo o que sucedera, e
resignado com a sua sorte.
Então saiu da porta da ermida um homem ricamente vestido, o qual
principiou com aspecto severo a fazer perguntas aos dois barqueiros. Patrício disse
a verdade; David a confirmou: dos discursos de ambos concluiu o cavaleiro que
eles nada importante tinham descoberto. Mandou embora David, ordenando-lhe
voltasse imediatamente para casa, e não revelasse uma só palavra das que tinha
ouvido, uma só coisa das que vira.
- Silêncio! Lhe disse o
cavaleiro. Se queres conservar a língua e os olhos; aliás uma e outros te serão
arrancados!
Prometeu o pobre rapaz cumprir à risca o que se lhe ordenava; e leve
como um gamo, deitou a correr por aquelas fragas sem lhe importar o que
sucederia ao amo, que ainda ficava em poder dos estrangeiros. O cavaleiro
voltou-se depois para Patrício, que estava meio morto de medo.
- Tu és barqueiro, lhe
disse. – Não é assim? – Há muitos anos
que essa é a minha vida. – Atreves-te a levar um homem, sem mala, sem criado,
sozinho, até as costas de França, perto de Calais, e deitá-lo em terra junto de
uma torre edificada em remotíssimos tempos, e enegrecida pelas tempestades e
pelos séculos? Atreves-te a torná-lo a trazer aqui logo que ele quiser voltar?
- E porque não? – Respondeu Patrício
cobrando ânimo, depois de hesitar um pouco. – Forte é o meu barco, e eu teria
vergonha de tornar a guiar um leme, se me não atrevesse a cruzar com ele o
canal. Estou pronto a soltar a vela, uma vez que nisto não haja senão os
perigos do mar, e que me pagueis o meu trabalho. – Serás satisfeito – respondeu
o venerando cavaleiro. – Vai preparar o barco. Daqui partirás para o teu
destino.
- Já? – Perguntou Patrício
enleado. Depressa estará prestes a barca: mas preciso levar para lá
mantimentos. Irei a casa buscar o meu pão de centeio e algum peixe escalado. –
Não, não é preciso! – Interrompeu o cavaleiro, irado, e soltando uma praga em
francês. – O teu companheiro cuidará do sustento. Confia nele!
Dizendo isto o velho voltou para a ermida; e o guarda, envolto no seu
manto branco, acompanhou o barqueiro até à enseada. Patrício desamarrou o
batel, onde colocou um banco para se assentar o passageiro. Bem pouco tardou este.
Era um mancebo vestido de preto. Entrou na barca, e assentou-se sem dar
palavra. Pensativo, e encostando a cabeça sobre o punho da sua larga espada,
deixou-se conduzir através das ondas escumosas, sem se despedir do outro, e nem
sequer fazer caso das vagas que às vezes o rociavam batendo umas contra as
outras na encontrada ressaca.
Ei-los ao largo! O tempo estava sereno; e a barca abria no luar uma
longa esteira no meio do mar sossegado.
Mudo parecia o estrangeiro, porque em todo o seguinte dia não proferiu uma
sílaba. Sem dar palavra, entregou dinheiro a Patrício para ir comprar algum
mantimento, quando passaram junto das costas da Escócia. Aproando em terra, ele
ficou sentado na barca, enquanto o barqueiro ia buscar provisões. Brevemente desfraldou
Patrício outra vez a vela ao vento, e empunhou os remos, levando o rumo na
direcção de Calais.
Descia a noite; e o desconhecido ainda não tinha soltado uma só
palavra: silencioso envolveu a cabeça no seu manto, e deitou-se a dormir. Patrício
cansado assentou-se ao leme, amaldiçoando lá consigo o passageiro, que nenhum
repouso lhe concedera.
Enfim o desconhecido dormia; e as larvas do sonho vieram desatar-lhe a
língua. Palavras distintas lhe fugiam dos lábios; e a sua alma parecia
grandemente agitada.
- ‘Concluir-se-á, pois, o majestoso edifício! Eu triturarei a argamassa, que deve reunir as colunas. Oh mestre, mestre! Não podias tu livrar deste encargo o pobre companheiro?’
In Alexandre Herculano, O Mestre Assassinado, Narrativa Histórica
Portuguesa, Antologia, António C. Franco, Colecção Textos Esquecidos, Guimarães Editores, Lisboa,
1992.
Cortesia de Guimarães Editores/JDACT