[…]
«Pouco tempo antes, Pessoa, cansado de encontros imaginários com
mulheres sem sexo, procurou curar a sua virgindade recorrendo à ajuda de
espíritos astrais, com quem comunicava através da escrita automática ou
mediúnica. E logo depois, em finais de 1919, iniciou uma relação com uma mulher
de carne e osso: “Ofélia Queiroz”.
O “Livro do Desassossego”
também contém um ‘Diário Lúcido’, que
parece ser quase contemporâneo do ‘Diário
ao Acaso’, mas os dois têm uma única entrada. Talvez Pessoa tencionasse
expandi-los, introduzindo novas entradas, ou transferindo para eles outros
textos já escritos mas sem título. Os trechos mais antigos do ‘Livro’
geralmente ostentam títulos, mas a partir de 1915 poucos os têm, sendo cada vez
mais diarísticos e dominados pelas inquietações intelectuais e emocionais de um
homem de quase 30 anos, habituado a ‘pensar
com as emoções e sentir com o pensamento’.
Estando também habituado a esconder-se por detrás de máscaras, Pessoa
chamou a este homem Vicente Guedes, um ajudante de guarda-livros que escrevia
nas horas vagas. Na verdade Vicente Guedes surgira bem mais cedo, antes de
1910, como poeta, contista e tradutor, mas a sua caracterização material e
psicológica só ficou definida por volta de 1915, enquanto ‘autor’ do “Livro do Desassossego”. À semelhança do
seu criador, Guedes era solitário, reservado, interiormente aristocrático e
invulgarmente lúcido. Em ‘Fragmentos de uma
Autobiografia’, e outros trechos sem título, narra os seus esforços angustiados
e infrutíferos para descobrir a verdade através da metafísica, da ciência e da
sociologia. Noutras passagens descreve o desassossego generalizado da sua
geração, resultante do livre-pensamento desenfreado das gerações anteriores
que, ‘ébrias de uma coisa incerta, a que
chamaram positividade’, destruíram
contentemente, o edifício moral, religioso e social da sociedade europeia,
não deixando nada de sólido a que os seus descendentes se pudessem agarrar.
Esta desoladora análise surge num trecho que também fala especificamente do ‘desassossego
político’, um conceito dolorosamente pertinente para os europeus da
segunda década do século passado.
A situação política de Portugal, já em plena crise, tornou-se
insustentável na década seguinte. Só no ano de 1920 houve sete mudanças de
governo, para além de inúmeras greves e manifestações, e o ano seguinte ficou
famoso pela “Noite Sangrenta” de 19 de
Outubro, em que vários dirigentes republicanos foram brutalmente
assassinados. A República, que nunca fora forte, desmoronou-se pouco a pouco, instaurando-se
uma primeira ditadura em 1926, na sequência do golpe do general Gomes da Costa,
que abriu caminho ao advento do ditador Salazar, dois anos depois.
Talvez a agitação política e social tenha, de algum modo, distraído
Pessoa do seu “Livro do Desassossego”,
que entrou num estado de quase dormência no início dos anos 20. O autor
dedicou-se a outros projectos, entre os quais vários artigos e ensaios em
defesa de um nacionalismo místico e da vinda de um Quinto Império que
ultrapassaria todas as modalidades políticas até então experimentadas em Portugal.
Foi também nesta década que Pessoa tentou enveredar pela carreira de empresário
comercial e cultural. Em 1921 fundou a Olisipo, concebida como uma grandiosa e
multifacetada empresa de intercâmbio entre a Grã-Bretanha e Portugal, mas que
acabou por funcionar como uma modesta agência comercial e igualmente modesta
editora, nomeadamente de dois volumes da sua poesia escrita em inglês, 1921, e
de uma edição aumentada das Canções,
1922, do poeta António Botto (1897-1959).Talvez para promover este último
livro, Pessoa publicou um artigo em que justificava a homossexualidade de Botto
como uma expressão natural do seu ideal estético inspirado na Grécia antiga. O
artigo desencadeou uma guerra jornalística e panfletária de que Pessoa foi um
dos combatentes mais destacados, batalhando não só com os seus pares literários
mas também com um grupo de estudantes da extrema-direita. Em 1924, depois de a
Olisipo ter fechado as portas, Pessoa fundou, com um amigo pintor, a revista Athena, onde publicou muitos poemas seus
e várias traduções, e em 1926 ele e o cunhado lançaram a Revista de Comércio e Contabilidade.
Na década de 1920, já na casa dos trinta anos, Pessoa tornou-se um cidadão interveniente, assumindo um papel activo na economia e na sociedade onde vivia». In Livro do Desassossego, Fernando Pessoa, Assírio & Alvim, edição de Richard Zenith, 2006, ISBN 978-972-37-1121-9.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT