segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Livro do Desassossego. Fernando Pessoa. «Esta desoladora análise surge num trecho que também fala especificamente do ‘desassossego político’, um conceito dolorosamente pertinente para os europeus da segunda década do século passado. Em finais de 1919, iniciou uma relação com uma mulher de carne e osso: “Ofélia Queiroz”»


jdact e cortesia de wikipedia

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«Pouco tempo antes, Pessoa, cansado de encontros imaginários com mulheres sem sexo, procurou curar a sua virgindade recorrendo à ajuda de espíritos astrais, com quem comunicava através da escrita automática ou mediúnica. E logo depois, em finais de 1919, iniciou uma relação com uma mulher de carne e osso: “Ofélia Queiroz”.
O “Livro do Desassossego” também contém um ‘Diário Lúcido’, que parece ser quase contemporâneo do ‘Diário ao Acaso’, mas os dois têm uma única entrada. Talvez Pessoa tencionasse expandi-los, introduzindo novas entradas, ou transferindo para eles outros textos já escritos mas sem título. Os trechos mais antigos do ‘Livro’ geralmente ostentam títulos, mas a partir de 1915 poucos os têm, sendo cada vez mais diarísticos e dominados pelas inquietações intelectuais e emocionais de um homem de quase 30 anos, habituado a ‘pensar com as emoções e sentir com o pensamento’.
Estando também habituado a esconder-se por detrás de máscaras, Pessoa chamou a este homem Vicente Guedes, um ajudante de guarda-livros que escrevia nas horas vagas. Na verdade Vicente Guedes surgira bem mais cedo, antes de 1910, como poeta, contista e tradutor, mas a sua caracterização material e psicológica só ficou definida por volta de 1915, enquanto ‘autor’ do “Livro do Desassossego”. À semelhança do seu criador, Guedes era solitário, reservado, interiormente aristocrático e invulgarmente lúcido. Em ‘Fragmentos de uma Autobiografia’, e outros trechos sem título, narra os seus esforços angustiados e infrutíferos para descobrir a verdade através da metafísica, da ciência e da sociologia. Noutras passagens descreve o desassossego generalizado da sua geração, resultante do livre-pensamento desenfreado das gerações anteriores que, ‘ébrias de uma coisa incerta, a que chamaram positividade, destruíram contentemente, o edifício moral, religioso e social da sociedade europeia, não deixando nada de sólido a que os seus descendentes se pudessem agarrar. Esta desoladora análise surge num trecho que também fala especificamente do ‘desassossego político’, um conceito dolorosamente pertinente para os europeus da segunda década do século passado.
A situação política de Portugal, já em plena crise, tornou-se insustentável na década seguinte. Só no ano de 1920 houve sete mudanças de governo, para além de inúmeras greves e manifestações, e o ano seguinte ficou famoso pela “Noite Sangrenta” de 19 de Outubro, em que vários dirigentes republicanos foram brutalmente assassinados. A República, que nunca fora forte, desmoronou-se pouco a pouco, instaurando-se uma primeira ditadura em 1926, na sequência do golpe do general Gomes da Costa, que abriu caminho ao advento do ditador Salazar, dois anos depois.
Talvez a agitação política e social tenha, de algum modo, distraído Pessoa do seu “Livro do Desassossego”, que entrou num estado de quase dormência no início dos anos 20. O autor dedicou-se a outros projectos, entre os quais vários artigos e ensaios em defesa de um nacionalismo místico e da vinda de um Quinto Império que ultrapassaria todas as modalidades políticas até então experimentadas em Portugal. Foi também nesta década que Pessoa tentou enveredar pela carreira de empresário comercial e cultural. Em 1921 fundou a Olisipo, concebida como uma grandiosa e multifacetada empresa de intercâmbio entre a Grã-Bretanha e Portugal, mas que acabou por funcionar como uma modesta agência comercial e igualmente modesta editora, nomeadamente de dois volumes da sua poesia escrita em inglês, 1921, e de uma edição aumentada das Canções, 1922, do poeta António Botto (1897-1959).Talvez para promover este último livro, Pessoa publicou um artigo em que justificava a homossexualidade de Botto como uma expressão natural do seu ideal estético inspirado na Grécia antiga. O artigo desencadeou uma guerra jornalística e panfletária de que Pessoa foi um dos combatentes mais destacados, batalhando não só com os seus pares literários mas também com um grupo de estudantes da extrema-direita. Em 1924, depois de a Olisipo ter fechado as portas, Pessoa fundou, com um amigo pintor, a revista Athena, onde publicou muitos poemas seus e várias traduções, e em 1926 ele e o cunhado lançaram a Revista de Comércio e Contabilidade.


Na década de 1920, já na casa dos trinta anos, Pessoa tornou-se um cidadão interveniente, assumindo um papel activo na economia e na sociedade onde vivia». In Livro do Desassossego, Fernando Pessoa, Assírio & Alvim, edição de Richard Zenith, 2006, ISBN 978-972-37-1121-9.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT