Introdução à leitura
da Década Quarta de Diogo do Couto
[…]
«Lucena volta a marcar distâncias:
se é verdade... Couto não duvida do que escreve. Como o sabe? Viu? Lucena, esse
leu. Se é verdade, como temos lido... Onde terá lido? Como? Quando? Em que
condições?
A epístola dedicatória da sua Década
4, datou-a Couto de 20 de Novembro de 1597, vésperas de dar à vela para
o reino a armada da carreira. Terá chegado a Lisboa em meados de 1598.
Entretanto Filipe II decidira fazer publicar, primeiro que a continuação de
Barros, as quatro Décadas do que tinham feito os próprios castelhanos naquelas
partes das Índias. Compreende-se. E, enquanto a de Couto esperava, ao cuidado de
Adeodato ou de outro, ou de outros, alguém no segredo dos livros e papéis do
Oriente, terá assinalado ao de Trancoso que chegara de Goa um novo manuscrito
com muitas coisas interessantes. Não duvidamos de que Lucena, cujo livro saiu
em 1600, o tenha tido em mãos. Quando escreve sobre a sede do cravo, à fé do
tem lido [se é verdade o que temos lido], o que tinha lido era certamente
na Década
4 de Diogo do Couto.
Nenhum outro autor tinha escrito
que o dito produto das Molucas secava as adegas e enxugava as casas. Assim se
atenua a gravidade dos ‘plágios’ de
Couto. Quem escrevia da Ásia inseria-se numa teia. Quem copiava era copiado. É
verdade, porém, que, entre os copiadores, o novel cronista não fica atrás de
nenhum.
Depois voltaremos à paráfrase d’Os
Lusíadas... Planeámos atrás. Chegou o tempo. Apologia de Lopo Vaz,
texto que só Diogo do Couto fornece. O apelo do maltratado a que se meçam a
injustiça que se lhe faz, a desproporção entre os seus serviços e esses maus
tratos não deixa de ter afinidades com os mesmos sentimentos expressos por
Camões. Palavras de Lopo Vaz: ‘Veja Vossa Alteza, e ponha diante de si, tamanho
agravo como este a um homem de minha qualidade e idade e de tantos e tao
grandes serviços’; ‘E ainda, Ninfas minhas, não bastava...’ vem no canto 7; ‘Vede,
Ninfas...’ Torna a pedir o poeta... Os que Lopo Vaz servia, maltrataram-no,
agravaram-no, prenderam-no... Os que Camões cantava, meteram-no em trabalhos,
reduziram-no a um estado imerecido e lamentável. N’Os Lusíadas:...
‘Aqueles que eu cantando andava
tal prémio de meus versos me
tornasssem,
a troco dos descansos que esperava,
das capelas de louro que me
honrassem,
trabalhos nunca usados me inventaram
com que em tão duro estado me
deitaram’.
Lopo Vaz, segundo Couto: ‘Ora,
veja Vossa Alteza o que me tem custado seu serviço...’. O que lhe tem custado?
Aqui, a afinidade torna-se mais estreita: ‘muitos frios, muitas calmas, muitas fomes e
sedes, muitos riscos de minha vida, dando a comer meu sangue aos tubarões no
mar...’ No primeiro canto: “Ó
grandes e gravíssimos perigos!” No último, a famosa estrofe 147:
‘Dando os corpos a fomes e vigias,
a ferro, a fogo, a setas e
pelouros.
A quentes regiões e plagas frias,
[...] A naufrágios, a peixes, ao
profundo’.
Frios e calmas, na Década;
quentes regiões e plagas frias, no poema. Fomes e sedes, na Década;
fomes e vigias, no poema. Dar o sangue aos tubarões, na Década; dar o corpo aos
peixes, no poema…
Quem tinha na ideia Os Lusíadas?
Lopo Vaz ou Diogo do Couto? O primeiro não pode ser. A sua apologia teria sido
recitada, ainda Luís Vai não completara dez anos. O governador-usurpador
morreu, antes de o poeta ter começado o seu poema. Donde uma inevitável
conclusão:
- se a influência e até a paráfrase d’Os Lusíadas neste passo não são um sonho, o documento respectivo, apologia de Lopo Vaz, não pode ser integralmente verdadeiro. Na mais favorável das hipóteses, Couto não teria apenas encurtado a fala. Tê-la-ia também rescrito, retocado, enfeitado...
Guerra
de Heitor da Silveira na costa de Cambaia. Um peão português derriba dois
cavaleiros mouros, e, trazendo um dos cavalos à rédea, apresenta-se ao nosso capitão,
pedindo-lhe que o arme cavaleiro».
In Diogo do Couto, Década Quarta da Ásia, volume I, coordenação de M. Augusta Lima Cruz, Coimbra Martins, Fundação Oriente, 1999, ISBN 972-27-0876-7.
continua
Cortesia
da Fundação Oriente/JDACT