Paris, 4 de Junho de 1940
«(…)
Nessa manhã, enquanto tomava o
pequeno-almoço, na cozinha, Carol notou a enorme agitação das noviças, que
cochichavam pelos cantos e lançavam olhares alarmados aos armários. Como madre
Mary já lhe explicara a causa do alarido, bebeu o leite, agarrou numa baguete,
barrou o interior com manteiga e saiu a trote, a caminho da porta da
residencial. No pátio, montou na Hirondelle, depois de envolver os livros numa cinta protectora e de os
pousar no cesto, à frente do guiador. Começou a pedalar e avançou para o
Boulevard Saint-Germain, onde virou à direita, na direcção da universidade,
constatando rapidamente que algo de anormal se passava em Paris. Parecia Julho,
mês em que a maioria da população rumava às províncias para passar o verão. Num
dia habitual, a cidade tinha muito movimento. Carros, motos, bicicletas, carroças
puxadas por cavalos, pequenos e grandes autocarros circulavam nas principais
ruas e avenidas, enquanto nos passeios centenas de pessoas entravam e saíam das
lojas, dos bistrôs, das boulangeries
ou das pharmacies.
No
entanto, hoje o que via era gente a carregar os carros com malas, baús, sacos e
caixotes. Seres em mudanças, atravessando o passeio, agitados até pararem junto
a um veículo, onde arrumavam os pertences enquanto davam instruções apressadas
aos familiares. Homens e mulheres, rapazinhos de calções ou meninas de saiotes,
idosos cautelosos e muitas empregadas corriam de volta até à porta de casa,
como se tivessem esquecido de algo essencial, observados pelas espantadas
porteiras dos prédios, de mãos enfiadas nos bolsos das batas. Carol começou a pedalar mais depressa na Hirondelle, com uma certeza incómoda a assentar
no seu espírito: Paris ia debandar em manada. Os habitantes tinham escutado o
cair das bombas nocturnas e já conheciam o desfecho lamentável da batalha de
Dunquerque. Uma desconfiança visceral atingira-os, o terror dos panzers tornara-se
insuportável e a cidade entrara em pânico. Horas depois de madre Mary, milhões
já sabiam que a força militar francesa desmoronara-se e que o seu pouco
respeitado Governo era um tigre de papel. A França ia ajoelhar em breve, talvez
a Linha Maginot ainda resistisse uns dias, mas o desfecho da guerra estava traçado.
Quando Carol chegou à Sorbonne, não viu as habituais centenas de estudantes em
grupos, à roda dos bancos, trocando piadas. Só um ou outro rapaz de cabeça baixa
se afastava, com um ar ensimesmado. Parecia domingo de manhã, quando os universitários
curavam a ressaca.
Mas
ela tinha de entregar um ensaio sobre a Odisseia.
Homero, o autor clássico que mais admirava, fora a sua escolha. Fascinara-a a
longa viagem de Ulisses e a paciente sabedoria de Penélope, bem como a
mitologia fantástica que percorria a narrativa. Como lhe saíra bem o texto,
estava confiante, embora o seu francês escrito não possuísse ainda a precisão e
a riqueza a que aspirava. Depois de encostar a Hirondelle à parede,
entrou pela porta principal do colégio, dirigindo-se aos gabinetes dos
professores, no primeiro andar, onde contava encontrar não só alguns colegas de
turma, pois todos tinham de apresentar os trabalhos, mas sobretudo o seu professor
de literatura grega, monsieur Sautierre, uma autoridade indisputada naquela área
de estudos. Com sessenta e tal anos, o lente francês escrevia grego desde os
sete e garantia conhecer todos os filósofos na intimidade. Sócrates, Platão,
Aristóteles, Xenofonte, durmo na cama com eles há sessenta anos!, dizia,
encantando os alunos com a sua retórica enleante e elegante. Porém, não estava
no seu gabinete, nem havia à sua porta qualquer estudante ansioso. Eram onze da
manhã, o que se passaria? Durante a hora seguinte, a minha prima esperou a
chegada do eminente especialista na Grécia Antiga, mas este não deu sinal de
vida. Apenas por lá passou um colega cuja cara lhe era vagamente familiar, mas
que rapidamente lhe virou costas. Então, pouco depois do meio-dia, desistiu e
caminhou para a saída com lentidão desmotivada. A sua Paris, onde era tão
feliz, desmoronava-se. Uma noite de bombas nos arredores e uma saraivada matinal
de más notícias tornaram possível o impensável.
Ainda
no hall, cruzou-se finalmente com alguém que estimava, Max
Katzenberg, um senhor barbudo e de nariz curvo, dos seus sessenta anos e sempre
enfiado nuns fatos coçados, exibia um olhar entristecido, que só se iluminava
ao falar de música, especialmente de compositores cujo nome começava com a
letra B, como Bach, Beethoven ou Brahms. Contudo, em Paris não era professor de
música, mas sim de literatura germânica, uma matéria que não dominava e que lhe
fora entregue por favor, pois era judeu. Chegado à pressa dois anos antes,
vindo da Alemanha e em fuga às perseguições nazis, a universidade sugerira-lhe
aquela cadeira para leccionar pagando-lhe uns raquíticos cobres. Para compor os
rendimentos, trabalhava à tarde numa loja de música perto da Residencial de
Saint-Sulpice, onde tentava vender violinos, pianos ou flautas». In Domingos
Amaral, A Bicicleta que Fugiu dos Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN
978-989-780-124-2.
Cortesia CdasLetras/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Literatura, Paris,