Charneca em flor
«Enche o meu peito, num encanto
mago,
O frémito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem
rosas...
Nos meus olhos as lágrimas
apago...
Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras
misteriosas
Que perturbam meu ser como um
afago!
E nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu
burel,
E, já não sou, Amor, Sóror
Saudade...
Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a
mel:
Sou
a charneca rude a abrir em flor!»
Versos de orgulho
«O mundo quer-me mal porque
ninguém
Tem asas como eu tenho! Porque
Deus
Me fez nascer Princesa entre
plebeus
Numa torre de orgulho e de
desdém!
Porque o meu Reino fica para Além!
Porque trago no olhar os vastos
céus,
E os oiros e os clarões são todos
meus!
Porque Eu sou Eu e porque Eu sou
Alguém!
O mundo! O que é o mundo, ó meu amor?!
O jardim dos meus versos todo em
flor,
A seara dos teus beijos, pão
bendito,
Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços...
São os teus braços dentro dos
meus braços:
Via
Láctea fechando o Infinito!...»
Rústica
«Ser a moça mais linda do
povoado.
Pisar, sempre contente, o mesmo
trilho,
Ver descer sobre o ninho
aconchegado
A bênção do Senhor em cada filho.
Um vestido de chita bem lavado,
Cheirando a alfazema e a
tomilho...
Com o luar matar a sede ao gado,
Dar às pombas o sol num grão de
milho...
Ser pura como a água da cisterna,
Ter confiança numa vida eterna
Quando descer à terra da verdade...
Deus, dai-me esta calma, esta pobreza!
Dou por elas meu trono de
Princesa,
E
todos os meus Reinos de Ansiedade».
Sonetos de Florbela Espanca, in Charneca
em Flor
In Florbela Espanca, Charneca em Flor, 1931, Editorial Estampa, 2013, ISBN 978-972-332-716-8.
Cortesia de EEstampa/JDACT
JDACT, Florbela Espanca, Poesia, Alentejo,