sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

O Último Judeu. Noah Gordon. «Espina tinha ouvido alguns judeus chamar os convertidos de los marranos, isto é, os porcos, afirmando que estavam eternamente condenados e não ressuscitariam…»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Primeiro Filho.

Toledo. Castela. 23 de Agosto de 1489.

Um Judeu Cristão

«(…) O prior era o mais perigoso dos seres humanos, um sábio, mas ao mesmo tempo um tolo, Bernardo Espina dizia irritado para si mesmo enquanto se afastava. Ele sabia que era o menos indicado para descobrir qualquer coisa de judeus ou cristãos, pois era desprezado pelos membros de ambas as religiões. Bernardo sabia a história da família Espina. Segundo a lenda, o primeiro ancestral a se estabelecer na Península Ibérica fora um sacerdote do templo de Salomão. Os Espina e outros tinham sobrevivido sob os reis visigodos e sob conquistadores ora mouros, ora cristãos. Conforme as instruções dos seus rabinos, tinham sempre seguido escrupulosamente as leis da monarquia e da nação. Os judeus haviam conseguido chegar aos mais altos estratos da sociedade espanhola. Tinham servido aos reis como vizires e prosperado como médicos e diplomatas, agiotas e financistas, colectores de impostos e comerciantes, agricultores e artesãos. Ao mesmo tempo, quase em cada geração, foram massacrados por turbas passiva ou activamente encorajadas pela Igreja. Os judeus são perigosos e influentes, induzindo à dúvida os bons cristãos, dissera severamente a Bernardo o padre que o convertera.

Durante séculos, os dominicanos e os franciscanos tinham manobrado as classes mais baixas (que chamavam de Pueblo menudo, arraia miúda), de vez em quando atiçando-as para um implacável ódio aos judeus. Desde os assassinatos em massa de 1391 (cinquenta mil judeus massacrados!), uma conversão em massa, sem paralelo na história judaica, levou centenas de milhares a aceitarem Cristo, alguns para salvar a vida, outros para não perder suas carreiras numa sociedade anti-semita. Alguns, como Espina, tinham realmente admitido Jesus de coração; muitos, no entanto, formalmente católicos, continuaram a cultuar secretamente o Deus do Velho Testamento. Na realidade eram tantos que, em 1478, o papa Sisto IV aprovou o estabelecimento de uma Comissão para destruir católicos apóstatas.

Espina tinha ouvido alguns judeus chamar os convertidos de los marranos, isto é, os porcos, afirmando que estavam eternamente condenados e não ressuscitariam no Dia do Juízo. Com mais caridade, outros chamavam os apóstatas de anusim, os forçados, insistindo que o Senhor perdoava os que estavam sendo coagidos, pois entendia sua necessidade de sobrevivência. Espina não estava entre os coagidos. De início, como menino judeu, ficara curioso a respeito de Jesus, aquela figura na cruz que via pelas portas abertas da catedral e a quem o pai e os outros às vezes se referiam como o pendurado. Quando procurava mitigar o sofrimento humano como jovem médico aprendiz, ele se deixou comover pelo sofrimento do Cristo; aos poucos, esse interesse inicial foi-se transformando numa fé, numa convicção ardente e, por fim, na ânsia de atingir uma pureza pessoal cristã, um estado de graça.

Uma vez comprometido, apaixonou-se pela divindade. Um sentimento muito mais forte que o amor eventual de uma pessoa simplesmente nascida dentro da cristandade. A paixão de Saulo de Tarso por Jesus não teria sido mais poderosa que a sua: inabalável, convicta, mais absorvente que qualquer anseio de um homem por uma mulher. Tinha procurado e recebido a conversão para o catolicismo aos vinte e dois anos, um ano após se tornar médico habilitado. Sua família entrara de luto, rezando o kadish, como se ele tivesse morrido. O pai, Jacob Espina, que fora tão cheio de orgulho e amor, passara por ele na praça sem responder a seu cumprimento, como se nem o conhecesse. Nessa época, Jacob Espina estava no último ano de vida. E já fora enterrado há uma semana quando Bernardo soube da sua morte. Espina ofereceu uma novena pela alma, mas não pôde resistir à tentação de rezar também o kadish, chorando sozinho enquanto recitava no quarto, sem a confortadora presença do rabino, a oração fúnebre». In Noah Gordon, O Último Judeu, 2000, Uma História de Terror na Inquisição, Editora Rocco, 2000, ISBN 978-853-251-171-6.

Cortesia de ERocco/JDACT

JDACT, Literatura, Século XV, Noah Gordon, Judeus, Escrita,