«Oh! Tempo é que não me falta; é inteiramente propriedade minha...»
«(…) O homem trigueiro à medida que escutava não perdia ensejo de rir à grande; e riu muito mais ainda quando o outro em resposta à sua pergunta Bem, mas afinal de contas o curaram?, respondeu: qual o quê! Mas então o senhor deve ter gasto muito dinheiro com isso! E nós aqui a acreditarmos nessa gente de lá, observou o homem de preto, criticando. É isso mesmo!, aparteou um indivíduo mal-ajambrado e corpulento, de uns quarenta anos, com um narigão vermelho e a cara cheia de espinhas, que estava sentado perto deles. Pelo jeito devia ser algum funcionário subalterno, com os defeitos típicos da sua classe. Pois é! Absorvem todos os recursos da Rússia para acabarem não fazendo coisíssima nenhuma! Oh! No meu caso o senhor está completamente equivocado, redarguiu o paciente chegado da Suíça, num tom amável e conciliatório. Naturalmente não posso contradizer a sua opinião, porque não estou a par de tudo isso; mas no meu caso o médico me conservou lá aproximadamente durante dois anos, à própria custa, e ainda gastou o resto do seu pouco dinheiro com esta minha viagem para cá. Como assim?! Então o senhor não dispunha de gente sua que pagasse?, indagou o homem moreno. Não; o rr. Pavlíchtchev, que costumava pagar por mim, morreu há dois anos. Escrevi, à vista disso, para Petersburgo, à sra. Epantchiná, uma parenta minha distante, mas não obtive resposta. Então tive de vir... E para onde vai agora? O senhor quer se referir.., onde vou ficar?... A bem dizer, não sei... Por aí...
Ainda
não pensou nisso, não é? E os dois ouvintes riram, outra vez. E não me
admiraria nada se esse embrulho aí fosse tudo que o senhor possui de seu neste
mundo!, aventou o homem do sobretudo preto. Nem vale a pena apostar!, retrucou
o funcionário de nariz vermelho, com ar jocoso. Eu cá não me abalançaria a isso
quanto mais a aventar que aqui o amigo tenha alguma coisa no carro de bagagem.
Aliás, convenhamos, a pobreza está longe de ser um vício. Pelos modos esse era
de facto o caso, e o jovem logo confirmou tal suposição, imediatamente, com a
sua presteza peculiar. Seja lá como for, o seu embrulho merece consideração,
prosseguiu o funcionário depois que todos se riram à larga (sim, todos, pois
por mais estranho que pareça, o dono do embrulho também se pusera a rir, encarando-os,
o que aumentou de muito a alegria), embora se possa apostar na certa que dentro
dele não haja luíses nem fredericos, e muito menos florins brunidos. Sim, pois
se não bastassem as polainas que o senhor usa sobre as botinas compradas no
estrangeiro, suficiente seria acrescentar a esse embrulho o tal parentesco com uma
pessoa como a sra. Epantchiná, a mulher do general! Sim, convenhamos que esse
embrulho aí se reveste de um valor todo especial, se é que realmente a sra.
Epantchiná é sua parenta. Não vá o senhor estar laborando num equívoco, em um
desses enganos que soem muitas vezes acontecer..., por via de um excesso de
imaginação.
Outra conjectura certa, essa do senhor, concordou e esclareceu o jovem
louro. Trata-se realmente, por assim dizer, de uma afirmação muito relativa,
pois ela quase não chega a ser parenta minha; tanto que nem me surpreendi por
não haver recebido resposta. Eu já contava com isso. Botou fora então o dinheiro dos
selos! Hum!... Em todo o caso o senhor é franco, não tem empáfia, o que já é a seu favor! Há, há!.. Conheço o general
Epantchín; aliás todas as pessoas o conhecem; basta ele ser como é; e em tempos conheci o sr. Pavlíchtchev também
que pagou as suas despesas na Suíça, se é que se trata de Nikolai Andréievitch
Pavlíchtchev, pois houve dois com esse nome: eram primos. O outro vive na Crimeia. O falecido
Nikolái Andréievitch era um homem de valor e muito bem relacionado; chegou a
possuir quatro mil servos…» In
Fiodor Dostoiévski, O Idiota, 1869, 1943, Livraria Latina, Relógio d’Água,
2014, ISBN 978-989-641-401-6.
Cortesia de LLatina/Rd’Água/JDACT
JDACT, Fiodor Dostoiévski, Literatura, O Saber,