O Factor Bellucci
«(…) São, assentiu Zé. Acenou-lhes
e voltou a concentrar-se nela, sem lhes prestar muita atenção. Os colegas acenaram
também e foram até ao balcão. Depois Zé não ouviu mais nada do que Cátia disse.
Esteve sempre com um olho no balcão. Lá estava o Pestana, a beber a bica, a
espreitar por cima da chávena, a segredar qualquer coisa aos outros, os outros
a olharem de esguelha para a mesa deles, a virarem-se para o Pestana, a fazerem
que sim com a cabeça. Aquilo seria um sinal de aprovação? Estaria ele a
detectar sinais de admiração da parte dos colegas? Veja lá, disse Cátia, se
quer ir ter com os seus colegas... Não, de maneira nenhuma. Estava a dizer? Estava
a dizer que... Mas Zé não a ouvia. Eles a olharem. Quis mostrar-se mais informal,
mais íntimo. Atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhadinha, como se
estivessem os dois a gozar à brava. Assim como assim, como não tinha a menor
hipótese de levar alguma coisa de uma mulher como a Bellucci, pelo menos que
ela lhe servisse para deixar o Pestana na mer… Quem é que é o cara de … agora,
há? De que é que se está a rir?, espantou-se Cátia. Acha assim tanta graça ao
meu problema? Não, não, é claro que não. Pôs-se sério. Problema? Voltaram para
o banco em ritmo de passeio. Cátia parecia bastante agradada com a companhia dele
e Zé sentiu-se bem como não lhe acontecia há muito. Figueireeedo!, esganiçou-se
o colega, quando Zé voltou do almoço O que era aquilo que eu vi?!
Aquilo, o quê?, disse Zé,
sentando-se à secretária. Aquiiilo! Pestana abriu os braços. Não era óbvio? Tu
e a Bellucci a almoçarem. Ah, isso... Encolheu os ombros. O que é que tem? O
que é que tem?! Estás a gozar comigo? Não, o que é que tem? Colocou as mãos atrás
da cabeça e rodou a cadeira, ficando de frente para o Pestana. Sou amigo dela. Ai,
és? Sou. Pronto, não se podia dizer que fosse um amigo muito chegado, mas,
tecnicamente, não era mentira nenhuma. E mesmo que fosse, só para fazer inveja
ao colega, até estava capaz de lhe dizer que a conhecia desde pequenina. Atirou-se
que nem um leão ao relatório da agência de Setúbal. Ficaria pronto ainda hoje,
sem problema.
Plim! A palavra message começou a piscar
no computador de Zé. Olá, colega de almoço. Não é possível! Zé ficou a olhar
para o ecrã, hipnotizado. Está aí alguém? Escreve qualquer coisa, Zé. Olááá!!! Escreveu.
Uma resposta jovial, estava bem. É só para dizer que eu não sou casada, mas já
vivi com um namorado. Ah, bom..., coisa recente? Sim. Estou a ver. Pois..., era
bom mas acabou-se. Não se preocupe. Há-de aparecer-lhe outro muito melhor. Obrigada
pela simpatia. De nada. Se todos fossem assim como você... Se todos fossem
assim como eu? O que é que ela quereria dizer com aquilo? Assim, como? Assim,
simpático, compreensivo. Ah... pois. Figueiredo, será que podemos almoçar outra
vez, se quiser, claro. Um dia destes, talvez...
É
claro que podemos,
pensou. Espera... E se fosse alguém do departamento a gozar com ele? Ergueu-se
na cadeira e espreitou por cima do computador, investigando os colegas. Não,
que estupidez, como é que eles sabem do que eu falei com ela ao almoço? É mesmo
ela, claro está que é. Claro, amanhã? Então, está combinado. Amanhã. Beijos. Beijos.
Beijos? Beijos?!!! A Bellucci a
mandar-me beijos?! Deixou-se cair para trás na cadeira, extasiado.
Não conseguiu acabar o relatório da agência de Setúbal. Nem lhe tocou, como é
que podia? Ficou o resto da tarde a olhar para o ecrã do computador e a sonhar,
em contemplação informática. Fantasias. Imaginou que do próximo almoço ia
nascer uma cumplicidade profunda entre eles e que ia convidar Cátia para um
cafezinho depois do trabalho e ela ia dizer logo que sim, ansiosa por passar
umas horas a sós com ele. Iriam encontrar-se furtivamente num café de bairro,
cheio de velhos indecentes a fingirem que liam A Bola enquanto espreitavam por cima do jornal e se
babavam a admirar as pernas dela. Viu-a a fixá-lo com uns olhinhos suplicantes
e a dizer-lhe, entre o fumo dos seus cigarros, que não aguentava mais, que
precisava de o ter só para ela, que queria unir-se a ele para serem como duas
almas gémeas. Iriam para casa dela, fariam amor urgente e acabariam os dois nus
na cozinha, com a porta do frigorífico aberta, a fazerem coisas esquisitas um
ao outro, a besuntarem-se com as compotas e o mel, como no filme Nove Semanas e Meia. Ah,
como era bom sonhar... Figueiredo? Sim, chefe? A dormir em serviço? Não, chefe,
só estava a... O meu relatório, já está pronto? Praticamente, chefe,
praticamente». In Tiago Rebelo, Eu e as Mulheres da Minha Vida, 2003, Edições ASA,
2016, ISBN 978-989-233-501-8.
Cortesia de EASA/JDACT
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