terça-feira, 19 de janeiro de 2021

O Mágico de Auschwitz.. «… política de apaziguamento em relação às novas exigências alemãs sobre a Polónia, dizendo que à luz destes acontecimentos a minoria alemã em Danzig poderá ser tentada a seguir o exemplo dos alemães dos Sudetas e...»

jdact e cortesia de wikipedia

Prólogo

«(…) Bertie!, chamou Gerda. Olha as notícias! Depois do frenesim dos apelos à calma na véspera, a telefonia passara toda essa manhã de 16 de Março de 1939 a emitir música clássica, decerto requiems pelo país que acabava de morrer. Mas pelos vistos o defunto ainda mexia porque havia novidades. Ou então era a oração fúnebre. Abandonando a janela, Levin encaminhou-se apressadamente para o quarto da costura, onde a mulher preparava os trajes especiais para os espectáculos de magia. Gerda terminava o vestido dourado da princesa Karnac, um número espectacular que ele andava a planear para a nova temporada. Sentou-se ao lado dela, junto a um enorme aparelho de rádio de cujos altifalantes jorrava a voz de um locutor checo. O casal, que só começara a aprender a língua quando para ali fora viver, tinha de se concentrar para compreender o que era dito. ... depois de o presidente Hácha ter assinado em Berlim um documento a solicitar ao exército alemão que ponha o destino do país e do povo checo nas mãos do Führer, noticiou o locutor no tom monocórdico de quem não se queria comprometer com nada. O senhor Hi… prepara-se para anunciar a transformação do nosso país num protectorado da Alemanha, o Protectorado da Boémia e da Morávia. O primeiro-ministro britânico, Neville Chamberlain, reagiu em Londres para sublinhar que não houve nenhuma agressão alemã, uma vez que a invasão teve a aquiescência da Checo-Eslováquia. No entanto, o senhor Chamberlain observou que pela primeira vez a Alemanha ocupa o território de uma população que não é germânica. Vários membros do Parlamento britânico perguntaram ao governo do senhor Chamberlain se manterá a política de apaziguamento em relação às novas exigências alemãs sobre a Polónia, dizendo que à luz destes acontecimentos a minoria alemã em Danzig poderá ser tentada a seguir o exemplo dos alemães dos Sudetas e... Os Levin seguiam as notícias e os comentários sobre as ramificações geoestratégicas dos acontecimentos, mas o que verdadeiramente os preocupava eram as implicações para as suas vidas. Sendo judeus, não ignoravam as ideias dos nacional-socialistas. Fora por isso que tinham saído de Berlim e ido viver para o único país democrático da Europa Central. E agora aquela mesma gente seguira-os até ali. Tentavam convencer-se a si mesmos de que a perseguição aos judeus aconteceria só na Alemanha; nos outros países não haveria problemas pois os nazis apenas não queriam os judeus na Alemanha. O que lhes importava que houvesse judeus na Checo-Eslováquia ou em qualquer outra terra? Decerto tudo iria correr bem.

Depois de pentear o filho com um pente molhado, Levin vestiu-lhe o casaco e olhou para o relógio; eram dez e meia da manhã. Passara duas horas no Hokus-Pokus, a loja de ilusionismo que abrira anos antes, mas o movimento nesses dias era lento. Tudo por causa da guerra. Havia já alguns meses que os alemães tinham entrado em Praga e ali estavam eles outra vez ao ataque. Dessa feita o alvo fora a Polónia, invadida havia dois dias. Ansioso com as novidades, fora buscar Peter para um passeio que o pusesse na rota das notícias. Onde vamos, papá? Queres ir ao Reino dos Comboios? O menino arregalou os olhos, como se lhe prometessem um chocolate. Que’o, que’o! Levin sorriu. Não havia melhor sítio em Praga para entreter uma criança que o grande parque temático da cidade. Abotoou o casaco ao filho e pegou-lhe ao colo. Quando se dirigia para a saída passou pela cozinha e espreitou para o interior. A mulher estava de avental à roda dos tachos a preparar o almoço. Vamos dar uma voltinha, anunciou. Voltamos daqui a pouco, está bem? Tenham, tenham cuidado. Apesar de ainda ser Setembro, soprava uma brisa fresca pelo bairro de Holešovice. Dando a mão ao filho, encaminhou-se para a Veletržní mas lembrou-se que as autoridades tinham acabado de interditar a circulação de judeus por essa rua. O melhor seria seguir pela bem mais discreta Šimáčková. Que soubesse, ainda podia caminhar por ali. Teria era de ser cuidadoso quando cruzasse a rua, porque de um dia para o outro os alemães haviam mudado o sentido da condução e os carros vinham da direcção contrária; da esquerda, a condução passara para a direita. Quando viraram para a Šimáčková cruzaram uma pastelaria com pastéis na montra; viam-se cestos de trdelník, medovník, koláče e outras iguarias, e sabiam que no interior havia ainda strudel e crepes palačinky. Que’o um bouo. O olhar de Levin desviou-se para a tabuleta na porta a  dizer Juden verboten. Os judeus estavam proibidos de entrar. Aquilo  era outra novidade trazida pelas forças de proteção. Então também já não se podia entrar nas pastelarias? Em boa verdade, as primeiras iniciativas contra os judeus tinham surgido ainda antes de os alemães marcharem sobre o país. No meio da crise, o governo democrático de Edvard Beneš demitira-se e fora substituído por um executivo autoritário que estabelecera a censura e afastara os judeus da função pública e do quadro médico dos hospitais. Novas medidas surgiram dois dias depois da entrada dos alemães em Praga, quando o governo checo, já tutelado pelos nazis, limitara a actividade de advogados e gestores judeus». In José Rodrigues dos Santos, O Mágico de Auschwitz, 2020, Edições Gradiva, 2020, ISBN 978-989-616-884-1.

Cortesia de EGradiva/JDACT

JDACT, José Rodrigues dos Santos, Literatura, Guerra, Nazismo, Literatura,