quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Eurico o Presbítero. Alexandre Herculano. «Foi então que o célebre Roderico se apossou da coroa. Os filhos do seu predecessor Vitiza, os jovens Sisebuto e Ebas, disputaram-lha largo tempo; mas, segundo parece dos escassos monumentos…»

jdact e cortesia de wikipedia

Os Visigodos

«A raça dos Visigodos conquistadora das terras de Hispânia subjugara toda a Península havia mais de um século. Nenhuma das tribos germânicas que, dividindo entre si as províncias do império dos césares, tinham tentado vestir sua bárbara nudez com os trajos despedaçados, mas esplêndidos, da civilização romana soubera como os Godos juntar esses fragmentos de púrpura e ouro para se compor a exemplo de povo civilizado. Leovigildo expulsara da Hispânia quase que os derradeiros soldados dos imperadores gregos, reprimira a audácia dos Francos, que nas suas correrias assolavam as províncias visigóticas de além dos Pirenéus, acabara com a espécie de monarquia que os Suevos tinham instituído na Galécia e expirara em Toletum, depois de ter estabelecido leis políticas e civis e a paz e ordem públicas nos seus vastos domínios, que se estendiam de mar a mar e, ainda, transpondo as montanhas da Vascónia, abrangiam grande porção da antiga Gália Narbonense.

Desde essa época, a distinção das duas raças, a conquistadora ou goda e a romana ou conquistada, quase desaparecera, e os homens do Norte tinham-se confundido juridicamente com os do Meio-Dia numa só nação, para cuja grandeza contribuíra aquela com as virtudes ásperas da Germânia, esta com as tradições da cultura e polícia romanas. As leis dos césares, pelas quais se regiam os vencidos, misturaram-se com as singelas e rudes instituições visigóticas, e já um código único, escrito na língua latina, regulava os direitos e deveres comuns quando o arianismo, que os Godos tinham abraçado o Evangelho, se declarou vencido pelo catolicismo, a que pertencia a raça romana. Esta conversão dos vencedores à crença dos subjugados foi o complemento da fusão social dos dois povos. A civilização, porém, que suavizou a rudeza dos bárbaros era uma civilização velha e corrupta. Por alguns bens que produziu para aqueles homens primitivos, trouxe-lhes o pior dos males, a perversão moral. A monarquia visigótica procurou imitar o luxo do império que morrera e que ela substituíra. Toletum quis ser a imagem de Roma ou de Constantinopla. Esta causa principal, ajudada por muitas outras, nascidas em grande parte da mesma origem, gerou a dissolução política por via da dissolução moral. Debalde muitos homens de génio revestidos da autoridade suprema, tentaram evitar a ruína que viam no futuro: debalde o clero espanhol, incomparavelmente o mais iluminado da Europa naquelas eras tenebrosas e cuja influência nos negócios públicos era maior que a de todas as outras classes juntas, procurou nas severas leis dos concílios, que eram ao mesmo tempo verdadeiros parlamentos políticos, reter a nação que se despenhava. A podridão tinha chegado ao âmago da árvore, e ela devia secar. O próprio clero se corrompeu por fim. O vício e a degeneração corriam soltamente, rota a última barreira.

Foi então que o célebre Roderico se apossou da coroa. Os filhos do seu predecessor Vitiza, os jovens Sisebuto e Ebas, disputaram-lha largo tempo; mas, segundo parece dos escassos monumentos históricos dessa escura época, cederam por fim, não à usurpação, porque o trono gótico não era legalmente hereditário, mas à fortuna e ousadia do ambicioso soldado, que os deixou viver em paz na própria corte e os revestiu de dignidades militares. Daí, se dermos crédito a antigos historiadores, lhe veio a última ruína na batalha do rio Chrysus ou Guadalete, em que o império gótico foi aniquilado. No meio, porém, da decadência dos Godos, algumas almas conservaram ainda a têmpera robusta dos antigos homens da Germânia. Da civilização romana elas não tinham aceitado senão a cultura intelectual e as sublimes teorias morais do cristianismo. As virtudes civis e, sobretudo, o amor da pátria tinham nascido para os Godos logo que, assentando o seu domínio nas terras de Hispânia, possuíram de pais a filhos o campo agricultado, o lar doméstico, o templo da oração e o cemitério do repouso e da saudade. Nestes corações, onde reinavam afectos ao mesmo tempo ardentes e profundos, porque neles a índole meridional se misturava com o carácter tenaz dos povos do Norte, a moral evangélica revestia esses afectos de uma poesia divina, e a civilização ornava-os de uma expressão suave, que lhes realçava a poesia. Mas no fim do século sétimo eram já bem raros aqueles em quem as tradições da cultura romana não tinham subjugado os instintos generosos da barbaria germânica e a quem o cristianismo fazia ainda escutar o seu verbo íntimo, esquecido no meio do luxo profano do clero e da pompa insensata do culto exterior. Uma longa paz com as outras nações tinha convertido a antiga energia dos Godos em alimento das dissensões intestinas, e a guerra civil, gastando essa energia, havia posto em lugar dela o hábito das traições covardes, das vinganças mesquinhas, dos enredos infames e das abjecções ambiciosas. O povo, esmagado debaixo do peso dos tributos, dilacerado pelas lutas dos bandos civis, prostituído às paixões dos poderosos, esquecera completamente as virtudes guerreiras dos seus avós. As leis de Vamba e as expressões de Ervígio no duodécimo concílio de Toletum revelam quão fundo ia nesta parte o cancro da degeneração moral das terras de Hispânia. No meio de tantos e tão cruéis vexames e padecimentos, o mais custoso e aborrecido de todos eles para os afeminados descendentes dos soldados de Teodorico, de Torismundo, de Teudes e de Leovigildo era o vestir as armas em defensa daquela mesma pátria que os heróis visigodos tinham conquistado para a legarem aos seus filhos, e a maioria do povo preferia a infâmia que a lei impunha aos que recusavam defender a terra natal aos riscos gloriosos dos combates e à vida fadigosa da guerra». In Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero, 1844, Bertrand Editora, 2011, ISBN 978-972-252-299-1

Cortesia de BertrandE/JDACT

JDACT, Alexandre Herculano, História, Visigodos, Século VIII, Literatura,