«(…) Sem as provisões de Jasmin, íamos precisar de bastante dinheiro para reforçar nossas rações de pão preto rústico e de batatas, e decidi verificar a possibilidade de vender algumas das joias e pratas que levara comigo para o gueto. Com a ajuda dos contrabandistas judeus que se aventuravam regularmente naquilo que tínhamos começado a chamar de Sitra Ahra, o Outro Lado, consegui avaliar nas lojas e galerias de antiguidades ao longo da Nowy swiat no início de Dezembro. Infelizmente, os donos, amigos, pensara eu antes, ofereciam apenas uma pequena fracção do valor dos meus tesouros. Por isso, decidi ir aguentando. Pouco tempo depois, Adam começou a fazer incursões com os outros membros da sua turma da rua para apanhar castanhas, folhas de dentes-de-leão e urtigas nos lotes bombardeados e nos campos abandonados ao longo do gueto, transformando assim as suas tardes em autênticos safaris urbanos. Ele costumava gastar a minúscula quantia semanal que eu lhe dava na mistela de melaço que fazia as vezes de doce na nossa periclitante Terra do Nunca, embora uma vez tenha conseguido chegar em casa com metade de um bolo de chocolate, que ganhara, anunciou triunfante, por ensinar um novo amigo do coro a andar de bicicleta.
Adam ensaiava com Rowy e os
outros cantores duas tardes por semana. Pouco antes do Natal, começou também a
ter aulas de xadrez com Ziv, no quarto que o rapaz ocupava na padaria. A essa
altura fazia um frio cortante, e era comum ver pedintes tremendo de frio e
mesmo cadáveres gélidos e duros como pedra pelas ruas. Os guardas alemães
deviam detestar estar tão longe de casa ao longo de todo o Inverno, pois começaram
a bater em judeus sem qualquer critério, só para se entreterem. Por causa
disso, as constantes perambulações de Adam deixavam Stefa num estado de exaustão
nervosa. Costumava brigar com ele, mas o menino insistia em desaparecer com
Wolfi, Feivel, Sarah e seus outros amigos sempre que o deixávamos sozinho. A
essa altura, tanto ele como os companheiros de brincadeira já tinham demonstrado
ser capazes de evitar a Gestapo e a Polícia Judaica muito melhor do que qualquer
adulto, de forma que, depois de algum tempo, Stefa e eu paramos de nos
preocupar tanto.
Mesmo assim, comecei a suspeitar
de que ele e os amigos deviam estar tramando alguma, talvez mesmo contrabando,
quando um dia, ao cair da tarde, Adam chegou em casa cheirando a estrume. Wolfi
me empurrou para um monte de lixo!, disse-me ele. A essa altura, eu já começara
a ouvir histórias de crianças que rastejavam pelos túneis dos esgotos para
chegar à zona cristã, e lancei-lhe um olhar céptico. É verdade!, insistiu ele. Sabe
que o Wolfi é meshugene!
E está ficando pior! Está bem, eu acredito, eu disse, já que Wolfi era de facto
um menino travesso. Peguei-o pela mão. Seja como for, vá-se lavar antes que sua
mãe chegue em casa, senão esta noite ninguém vai ter paz.
O correio ainda era entregue, embora tivéssemos de pagar subornos semanais ao carteiro, e no princípio de Janeiro recebi uma primeira carta de Liesel. Na fotografia que vinha no envelope, ela exibia aquilo que chamava de seu bronze mediterrânico. Sua nova amiga Petrina tinha cabelo preto, curto e espetado, além de lindos olhos límpidos. Passara o braço em volta do ombro da minha filha numa postura de camaradagem, mas percebi, pela maneira solene como Liesel a olhava, que minha filha estava apaixonada. Liesel tinha feito aquela pose para me dizer o que não se atrevia a escrever. Perguntava-me de que é que eu precisava, por isso fiz uma longa lista, começando com tabaco para cachimbo para mim, pimenta para Adam e chocolate para Stefa. Agora parecia inútil manter segredos entre nós. Espero que você e Petrina tenham uma óptima vida juntas na terra de Homero, rematei no fim da carta. Dentro deste envelope vai um beijo do seu pai tonto e velhote, que espera que o perdoe. Durante anos, receara desistir de minhas expectativas para minha filha, mas quando pus aquela carta no correio senti uma leveza de espírito que me deixou numa espécie de vertigem, como se tivesse consertado uma coisa que estava partida. Quando, mais tarde, contei a Izzy o que escrevera na carta para Liesel, ele me deu os parabéns, eu sabia que o faria, e surpreendi a mim mesmo ao confessar-lhe que só agora estava me tornando o pai que sempre esperara ser.
Nessa
noite, depois do jantar, meu sobrinho e eu fomos dar um longo e alegre passeio.
Seria o nosso último. Quero que saiba isto: Adam era uma criança nascida sob os
signos tanto do Sol como da Lua. Quando estava triste, a tristeza dele passava
por mim e Stefa como um vento desolado, transformando nosso espírito em poeira.
Mas quando estava contente, dançando sozinho um tango que tocasse no gramofone
ou esticando os dedos para executar os arpejos de Bach no piano da mãe, ou
simplesmente sentado aos meus pés fazendo contas de multiplicar, tínhamos
certeza de que iríamos sobreviver aos nazis». In Richard Zimler, Os Anagramas
de Varsóvia, 2009, Editora Record, 2010, ISBN 978-850-109-966-2, Porto Editora,
Porto, 2015, ISBN 978-972-004-728-1.
Cortesia de ERecord/PortoEditora/JDACT
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