Servos da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da Catalunha
«(…) Bernat tentou em vão
assimilar todos aqueles nomes, mas quando ia voltar a perguntar, o homem já
tinha desaparecido. Segue por esta mesma rua até à Praça de Sant Jaume, repetiu
para Arnau. Disso lembro-me. E uma vez chegados à praça, voltamos a virar à
direita, disso também nos lembramos, não é verdade, meu filho? Arnau parava de
chorar sempre que ouvia a voz do pai. E agora?, disse em voz alta.
Encontrava-se numa nova praça, a de Sant Miquel. Aquele homem só falou de uma
praça, mas não nos podemos ter enganado. Bernat tentou perguntar a um par de pessoas,
mas nenhuma se deteve. Todos têm pressa, comentou para Arnau, precisamente
quando viu um homem parado em frente à entrada de..., um castelo? Aquele ali
não parece ter pressa; talvez... Bom homem..., chamou, por detrás do homem, tocando-lhe
na capa negra. Até Arnau, fortemente agarrado ao seu peito, se sobressaltou
quando o homem se virou, tal foi o susto de Bernat. O ancião judeu abanou
cansadamente a cabeça. Era aquilo que as acesas prédicas dos sacerdotes
cristãos conseguiam. Diz-me, respondeu-lhe. Bernat não conseguia afastar o
olhar da rodela vermelha e amarela que cobria o peito do ancião. Depois, olhou
para o interior daquilo que lhe parecera um castelo amuralhado. Todos os que
entravam e saíam eram judeus! Todos traziam aquele sinal. Seria permitido falar
com eles? Querias alguma coisa?, insistiu o ancião. Co..., como se chega ao
bairro dos oleiros? Segue sempre a direito por esta rua, indicou-lhe o ancião
com um gesto da mão, e chegarás ao portal da Boquería. Continua pela muralha
até ao mar, e na porta seguinte fica o bairro que procuras.
Afinal de contas, os curas só
tinham avisado que não se podia ter relações carnais com eles; por isso a
Igreja os obrigava a usar aquelas rodelas, para que ninguém pudesse alegar
ignorância sobre a condição de qualquer judeu. Os curas falavam sempre deles
com grande exaltação e, no entanto, aquele velho... Obrigado, bom homem,
respondeu Bernat esboçando um sorriso. Eu é que te agradeço, respondeu-lhe o
velho. Mas daqui para a frente procura que não te vejam a falar com um de
nós..., e muito menos a sorrir-nos. O velho cerrou os lábios num esgar de
tristeza.
No portão da Boquería, Bernat deu
com um grande grupo de mulheres que compravam carne: tripas e cabra. Durante
uns instantes, observou como elas avaliavam a mercadoria e discutiam com os
vendedores. Esta é a carne que tantos problemas ocasiona ao nosso senhor, disse
para o filho. Depois, riu-se ao pensar em Llorenç de Bellera. Quantas vezes o
vira a tentar amedrontar os pastores e ganadeiros que abasteciam de carne a
cidade condal! Mas só se atrevia a isso, a amedrontá-los com os seus cavalos e
com os seus soldados; quem levasse gado para Barcelona, onde só podiam entrar
animais vivos, tinha direito de pasto em todo o principado. Bernat contornou o
mercado e desceu para Trentaclaus. As ruas eram mais largas e, à medida que se
aproximava do portão, observou que, diante das casas, dezenas de objectos de cerâmica
secavam ao sol: pratos, malgas, panelas, jarros ou ladrilhos. Procuro a casa de
Grau Puig, disse a um dos soldados que vigiavam o portão.
Os Puig tinham sido vizinhos dos
Estany ol. Bernat recordava-se de Grau, o quarto de oito famélicos irmãos que não
conseguiam encontrar nas suas escassas terras comida suficiente para todos. A mãe
de Bernat gostava muito deles, porque a mãe dos Puig a ajudara a parir o próprio
Bernat e a irmã. Grau era o mais desenvolto e mais trabalhador dos oito; por
isso, quando Josep Puig conseguiu que um parente admitisse um dos seus filhos
como aprendiz de oleiro em Barcelona, ele, com dez anos, fora o escolhido. Mas
se Josep Puig não podia alimentar a família, dificilmente ia poder pagar as duas
quartas de trigo branco e os dez soldos que o parente lhe pedia para tomar a
seu cargo Grau durante os cinco anos de aprendizagem. A isso seria preciso
somar os dois soldos que Llorenç de Bellera exigira por libertar um dos seus
servos, e a roupa que Grau teria de levar para os dois primeiros anos de
aprendizagem, porque o mestre só se comprometia a vesti-lo durante os três últimos
anos. Por isso, o pai Puig acorreu à casa dos Estany ol, acompanhado do seu
filho Grau, pouco mais velho que Bernat e a irmã. O louco Estany ol escutou a
proposta de Josep Puig com atenção: se dotasse a sua filha com aquelas
quantidades e as adiantasse a Grau, o seu filho casaria com Guiamona aos
dezoito anos, quando já fosse oficial oleiro. O louco Estany ol olhou para
Grau; em algumas ocasiões, quando a família do rapaz já não dispunha de outro
recurso, tinha ido ajudá-los nos campos. Nunca pedira nada, mas regressara
sempre a casa com alguma verdura ou algum cereal. Tinha confiança nele. O louco
Estany ol aceitou.
Depois de cinco anos de duro
trabalho como aprendiz, Grau conseguiu a categoria de oficial. Seguiu as ordens
do mestre que, satisfeito com as suas qualidades, começou a pagar-lhe um soldo.
Aos dezoito anos cumpriu a sua promessa e casou com Guiamona. Filho, disse
Estany ol a Bernat, decidi dotar de novo Guiamona. Nós somos apenas três e
temos as melhores terras da região, as mais extensas e as mais férteis. Eles
podem precisar desse dinheiro. Pai, interrompeu-o Bernat, porque me estás a dar
explicações? Porque a tua irmã já teve o seu dote, e tu és o meu herdeiro. Esse
dinheiro pertence-te. Faça o que lhe parecer adequado.
Quatro anos depois, aos vinte e
dois, Grau apresentou-se ao exame público que se realizava na presença de
quatro cônsules da confraria. Realizou as suas primeiras obras: um jarro, dois pratos
e uma escudela, sob o olhar atento daqueles homens, que lhe outorgaram a
categoria de mestre, o que lhe permitia abrir a sua própria oficina em
Barcelona e, claro, usar o selo distintivo dos mestres, que devia ser
estampado, prevenindo possíveis reclamações, em todas as peças de cerâmica que
saíssem da sua oficina. Grau, em honra do seu apelido, escolheu o desenho de
uma montanha». In Ildefonso Falcones, A Catedral do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009,
ISBN 978-972-251-511-5.
JDACT, Barcelona, Escrita, Ildefonso Falcones,