quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Ildefonso Falcones. A Rainha Descalça. «Sorte, repetiu antes de empreender a volta correndo muito. Uma vez sozinha, Caridad reparou no convento, o lugar indicado por don Damián»

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Porto de Cádiz. 7 de Janeiro de 1748

«(…) Atracada a tartana, Caridad, tal como havia sucedido em Cádiz, deteve-se e hesitou na estreitíssima faixa de terreno que se abria entre a margem do rio e a primeira linha de edifícios de Triana, alguns deles com os alicerces à mostra pela acção das águas do Guadalquivir, tal era sua proximidade. Um dos carregadores lhe gritou que se afastasse para descarregar um grande saco. O grito chamou a atenção do capitão, que meneou a cabeça lá da borda. Seu olhar cruzou com o do grumete, também atento a Caridad; ambos conheciam o seu destino. Tens cinco minutos, concedeu a este. O rapaz agradeceu a permissão com um sorriso, saltou a terra e puxou Caridad. Corre. Segue-me, urgiu-a. Estava consciente de que o capitão o deixaria em terra se não se apressasse.

Superaram a primeira linha de edifícios e chegaram até à igreja de Santa Ana; seguiram afastando-se do rio mais duas quadras, o grumete nervoso, puxando Caridad, esquivando-se das pessoas que os observavam estranhando, até se encontrarem diante da Cava. Essas são as Mínimas, indicou o rapaz apontando uma construção na margem oposta da Cava. Caridad olhou na direcção que apontava o dedo do grumete: uma construção baixa, caiada, com uma igreja humilde; depois dirigiu o olhar para o antigo fosso defensivo que se interpunha no seu caminho, afundado, repleto de lixo em muitos pontos, precariamente aplanado em outros. Tens alguns lugares para atravessar, acrescentou o rapaz imaginando o que passava pela cabeça de Caridad, há um em São Jacinto, mas fica algo afastado. As pessoas atravessam por qualquer lugar, vês? E apontou para algumas pessoas que desciam ou subiam pelos lados do fosso. Tenho de voltar à embarcação, advertiu-a ao ver que Caridad não reagia. Sorte, negra. Caridad não disse nada.

Sorte, repetiu antes de empreender a volta correndo muito. Uma vez sozinha, Caridad reparou no convento, o lugar indicado por don Damián. Atravessou o fosso por um caminhinho aberto entre os montes de lixo. Na veiga não havia lixo, mas em Havana, sim; tinha tido oportunidade de vê-lo quando o senhor a havia levado à cidade para entregar as folhas de tabaco ao armazém do porto. Como podiam os brancos jogar fora tantas coisas? Alcançou o convento e empurrou uma das portas. Fechada. Bateu. Esperou. Nada aconteceu. Voltou a bater, com timidez, como se não quisesse incomodar. Assim não, negra, disse-lhe uma mulher que passava a seu lado e que, quase sem parar, puxou uma corrente que fez soar uma sineta. Pouco depois se abriu um postigo gradeado numa das portas. A paz do Senhor esteja contigo, ouviu que dizia a porteira; pela voz, uma mulher já velha. Que é o que te traz à nossa casa? Caridad tirou o chapéu de palha. Embora não chegasse a ver a monja, baixou os olhos para o chão. Don Damián me disse que viesse aqui, sussurrou. Não te entendo. Caridad havia falado rápido, atropeladamente, como faziam os boçais cubanos ao dirigir-se aos brancos.

Don Damián…, esforçou-se, ele me disse que viesse aqui. Quem é don Damián?, inquiriu a porteira depois de uns instantes de silêncio. Don Damián…, o sacerdote da embarcação, d’ A Rainha. A rainha? Que dizes da rainha?!, exclamou a monja. A Rainha, a embarcação de Cuba. Ah! Uma embarcação, não sua majestade. Pois…, não sei. Don Damián, disseste? Espera um momento. Quando o postigo voltou a abrir-se, a voz que surgiu dele era autoritária, firme. Boa mulher, o que te disse esse sacerdote que devias fazer aqui? Só me disse que viesse. A monja não voltou a falar senão depois de alguns segundos. E o fez com voz doce. Somos uma comunidade pobre. Dedicamo-nos à oração, à abstinência, à contemplação e à penitência, não à caridade. Que poderias fazer tu aqui? Caridad não respondeu. De onde vens? De Cuba. És escrava? E teus senhores?

Sou…, sou livre. Além disso, sei rezar. Don Damián a havia instado a que dissesse isso. Caridad não chegou a ver o resignado sorriso da monja. Escuta, disse esta: tens de ir à Confraria de Nossa Senhora dos Anjos, entendes? Caridad permaneceu em silêncio. Para que don Damián me fez vir aqui?, perguntou-se. A Confraria dos Negritos, explicou a monja, a tua. Eles te ajudarão…, ou te aconselharão. Escuta: caminha até à igreja de Nossa Senhora dos Anjos, perto da Cruz do Campo. Segue toda a Cava para o norte, para São Jacinto. Ali poderás atravessar a Cava, entra à direita e continua pela rua de Santo Domingo até chegar à ponte de barcos, cruza-a e depois… Caridad deixou as Mínimas tentando reter na mente o itinerário. Dos Anjos. Haviam-lhe dito que tinha de ir ali. Dos Anjos. Iriam ajudá-la. Na Cruz do Campo, recitava em voz baixa. Absorta nos seus pensamentos, caminhou alheia ao olhar das pessoas: uma negra voluptuosa, vestida com farrapos cinzentos e segurando uma pequena trouxa, e que não cessava de murmurar. No Altozano, assombrada diante do monumental castelo de São Jorge no início da ponte, chocou-se com uma mulher. Tentou desculpar-se, mas as palavras não surgiram; a mulher a insultou, e Caridad fixou os olhos em Sevilha, na outra margem. Dezenas de carros e cavalgaduras cruzavam a ponte num sentido ou no outro; a madeira rangia sobre os barcos. Aonde pensas que vais, negra?» In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça, 2013, Bertrand Editora, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT

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