Abismo
«(…) Estás a olhar para onde?,
ouve-a perguntar-lhe num tom de voz surda e arrastada, que ultimamente tomara
como sua, perdido sem remédio o antigo tom de mel. E nem estremece quando em
seguida a mãe lhe pega por baixo dos braços e a ergue, leve como um pássaro de
ossos miudinhos, sentindo-se tão espantada que nem dá conta de ser levada até à
janela de onde jorra a luz intensa, as duas alumbradas, cegas desse extremo
luzimento, tropeçando no que desconhecem uma da outra: a loucura e o afecto.
Mais inimiga do que mãe, quando sem compaixão pendura a filha do lado de fora
do parapeito de mármore, escaldante àquela hora da tarde, enquanto a casa se
entorpece de silêncio. Ao olhar para baixo Beatriz admira-se com o abismo que
de súbito se abre a seus pés, incapaz de perceber como é possível haver uma tão
grande distância entre os seus sapatinhos de verniz e o chão empedrado. E
decidida a aceitar, mesmo sem entender, a decisão da mãe em pendurá-la naquele
imenso espaço ameaçador e solitário, limita-se a fechar os olhos, sem de nenhum
modo tentar salvar-se, corpo magrinho que não se defende, balouçar fraco de
criança frágil num tempo sem tempo determinável, onde nada existe mais, como se
a vida se tivesse imobilizado num lugar já inexistente.
Então, entreabre as
pálpebras de hóstia fina, e consumida de amor, ergue os olhos para fitar a mãe,
que de braços estendidos a pendura, beleza rutilante iluminada pela chama do ódio
que por ser tanto poderá consumi-la, consumindo-se a si própria, veneno de
negrume álgido e monstruoso, que num disfarce de beleza torna a mãe mais
deslumbrante do que nunca, olhar de ametista, enlouquecido e implacável, que o
excesso de aurora parece mudar em alvura da madrepérola. Meio desfalecida a
menina aquieta-se. Conivente? Dependente daqueles longos dedos afuselados,
unhas amendoadas pintadas de um vermelho sanguíneo a cravarem-se debaixo dos
seus braços, fininhos como galhos quebradiços, que as mangas de balão do vestido
não tapam, saia enfunada pela aragem que de súbito se levanta para os lados do
rio que passa na mata ao fundo, muito para lá do moinho de vento de fiar a água
do poço branco, que Beatriz distingue num esvaimento sem esperança, pois em
nenhum momento pensa que a mãe vá puxá-la até si, fazendo-a regressar ao
resguardo ensombrecido da sala.
E mesmo prestes a
cair, tenta imaginar como seria se pudesse voar até ela e poisar-lhe ao de leve
num dos ombros macios, como faria uma pomba. Ressurreição? Mas inesperadamente é
a mãe que a sobe, com uma pressa súbita, fria e hirta, determinada. Movida por uma
qualquer razão obscura, que para sempre lhe escapará. E mal é poisada no chão
da sala que lhe parece mergulhada no breu absoluto, oscila sem amparo nem
orientação, presa de uma vertigem que lhe rasga o coração descompassado no
peitinho transido de medo. Então, implacável, a mãe volta a aproximar-se, e ela
instintivamente recua apavorada, passo curto para trás, a embater na mesa onde
uma jarra de cristal oscila, enquanto uma chuva de pétalas de rosas-chá se
espalha no soalho, formando um trilho acre de odores macerados que sem querer
pisa, recusando-se a reparar no cruel sorriso irónico da mãe, mordido pelos
seus dentes brancos e acerados de loba jovem, auréola de anjo em torno da sua
cabeça delineada pela reverberação do ouro das ondas do seu cabelo solto, mão
perfumada a indicar-lhe o caminho da porta, enquanto lhe grita: sai
da minha vida!
Espécie de rugido rouco de fera selvagem que a atravessa como o
gume afiado de uma espada, e é então que Beatriz se volta e corre e demora e
escorrega e desliza até à porta fechada diante da qual pára, sem conseguir
chegar à maçaneta de porcelana branca com um fio dourado, a fazê-la sentir-se mínima
assim em bicos de pés, braço erguido e trémulo, e quando finalmente a consegue
rodar e a porta se abre, à sua frente está o longo corredor que reconhece,
mergulhado num perfeito negrume, para onde de um salto se atira em direcção ao
esquecimento». In Maria Teresa
Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.
Cortesia de PdQuixote/JDACT
JDACT, Maria Teresa Horta, Literatura, Saber,