«(…) E o facto de ter sido uma mulher sábia, que foi destroçada pelos seus assassinos, fez dela uma mártir lembrada ao longo dos séculos. Não por acaso, Hipácia vem atraindo círculos feministas nos séculos XX e XX. Ademais, tornou-se uma figura lendária, que ocupou vários autores a partir do século XVIII na Europa (DZIELSKA, 2009). Mas afinal, do ponto de vista histórico filosófico, o que se sabe dela? Os traços que chegaram até nós provêm do olhar de homens. Eles se ligam bastante aos elementos públicos da sua vida, e talvez porque naquele contexto ela não devesse transitar pelo público, mais se escreveu sobre a sua morte, do que sobre sua vida.
Este
artigo, por sua vez, propõe interpretar a vida de Hipácia no âmbito da ordem
normativa que começa a se estabelecer em Alexandria, na viragem do século IV
para o século V a.C., período em que ela viveu. Porque os vestígios da sua vida
são escassos nas fontes antigas, percebe-se que os comentadores, em boa parte
mulheres, nem sempre concordam ao interpretar tais fontes. Com efeito, a
produção histórica e filosófica hodierna em torno a Hipácia, mostra quão
difícil é tentar reconstruir a vida dessa figura. Visando interpretar os dados
lacunares antigos que chegaram aos nossos dias, pessoas estudiosas incorrem em
generalizações e em desacordos acerca de alguns aspectos, como por exemplo, a
genealogia filosófica à qual pertencia Hipácia. Mas isso se deve ao facto que,
dos antigos, foram recebidas diferentes genealogias, sendo impossível saber o
que Hipácia realmente leu e ensinou. Longe de exaurir tal querela, no seu
primeiro momento, o presente estudo visa pontuar algumas discordâncias e
incertezas sobre o tema, posicionando-se a favor de uma fonte antiga: a História Eclesiástica de Sócrates
Escolástico. Um ponto não menos turbulento é o carácter público do ensino de
Hipácia, comentado na segunda parte deste artigo. Embora se tenha discutido o
sentido dessa publicidade, é quase acordo geral que Hipácia dava suas aulas
publicamente em plena rua. De interesse dos estudos de género, há que se
revisar a dicotomia público/privado, porquanto:
1. Na época de Hipácia as mulheres ocupavam o espaço público, basta lembrar as sacerdotisas, as vendedoras nas feiras, as meretrizes, e mesmo as mulheres filósofas, como Temistoclea e Hipárquia, por exemplo;
2.
Sem um espaço privado, onde estudar e realizar as suas pesquisas, sem um tecto
todo seu, para usar a expressão de Virginia Woolf, e sem os meios materiais
necessários, como resultado Hipácia não teria condições de ministrar os seus
ensinamentos. De modo que ela circulava entre o público e o privado.
Todavia, há-de se observar que quando insisto na necessidade de um espaço privado, não se trata de um espaço de desempoeiramento. Muito pelo contrário, e por isso a remissão à Virginia Woolf: trata-se de um espaço onde as mulheres pudessem se retirar dos afazeres comezinhos estabelecidos para a dona de casa, um espaço adequado ao exercício do pensamento e da escrita. Woolf fala de um quarto reservado para isso, mas também admite a dificuldade que as mulheres elisabetanas tinham de possuir este espaço privado. Imagino que talvez Hipácia tivesse esse espaço interior de poder, uma vez que a sua família era da elite aristocrática, o que significa que vivesse numa casa grande, e não numa casa pequena, como as famílias menos abastadas viviam (penso aqui a partir do modelo das residências típicas das cidades mediterrâneas por volta do século III a.C., onde ao redor dos monumentos se encontrava uma multidão de casas, divididas entre as domus e as insulae; as primeiras são as casas individuais, com um ou dois andares, abertas para os espaços internos; são reservadas para as famílias ricas e ocupam um terreno precioso (em torno de 800-1000 m2); já as insulae são habitações colectivas, com um grande número de cómodos abertos para o exterior, com janelas e balcões; o andar térreo é destinado às lojas ou a moradias mais nobres, também chamadas de domus; os andares seguintes se dividem em apartamentos de vários tamanhos, habitados pelas famílias menos abastadas).
Com
efeito, aqui é preciso evitar a falsa dicotomia público/privado, que se
estabeleceu na historiografia desde o século XIX. Segundo LISSARAGUE (2002),
este é um dos pontos que chamou atenção do debate sobre o estatuto das mulheres
na Grécia. Como qualificar o que parece para a maioria dos comentadores uma
obrigação: devemos com alguns pensar que elas assim estão protegidas, ou,
seguindo nossos próprios valores, considerar que existe aí um limite para a sua
autonomia? Ou que este espaço possa ser também de empoderamento? Lançando a
questão para o mundo alexandrino, se propõe analisá-la a partir da noção de
liberdade social e pessoal». In Loraine Oliveira, Vestígios da Vida de
Hipácia de Alexandria, 2016, Revista Perspectiva
Filosófica, volume 43, nº 1, Wikipedia.
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JDACT, Loraine Oliveira, Hipácia,