sábado, 2 de janeiro de 2021

Poesia. Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar… Ary dos Santos. «Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia era tarde demais para haver outra noite…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Estrela da Tarde

«Era a tarde mais longa de todas as tardes
Que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas
Tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca
Tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste
Na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhamos tardamos no beijo
Que a boca pedia
E na tarde ficamos unidos ardendo na luz
Que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto
Tardaste o sol amanhecia
Era tarde demais para haver outra noite
Para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça
E o meu corpo te guarde

Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza

Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites
Que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite
De aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois
Corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite
Uma festa de fogo fizeram

Foram noites e noites que numa só noite
Nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites
Que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles
Que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto
Se amarem, vivendo morreram

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça
E o meu corpo te guarde

Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza

Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Eu não sei, meu amor, se o que digo
É ternura, se é riso, ou se é pranto
É por ti que adormeço e acordo
E acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste
Dum triste e profundo recanto

Essa noite em que cedo nasceste despida
De mágoa e de espanto
Meu amor, nunca é tarde nem cedo
Para quem se quer tanto»

Poema de Ary Dos Santos / Fernando Tordo

No Teu Poema

«No teu poema
Existe um verso em branco e sem medida
Um corpo que respira, um céu aberto
Janela debruçada para a vida

No teu poema existe a dor calada lá no fundo
O passo da coragem em casa escura
E, aberta, uma varanda para o mundo

Existe a noite
O riso e a voz refeita à luz do dia
A festa da Senhora da Agonia
E o cansaço
Do corpo que adormece em cama fria

Existe um rio
A sina de quem nasce fraco ou forte
O risco, a raiva e a luta de quem cai
Ou que resiste
Que vence ou adormece antes da morte

No teu poema
Existe o grito e o eco da metralha
A dor que sei de cor mas não recito
E os sonos inquietos de quem falha

No teu poema
Existe um canto, chão alentejano
A rua e o pregão de uma varina
E um barco assoprado a todo o pano

Existe um rio
O canto em vozes juntas, vozes certas
Canção de uma só letra
E um só destino a embarcar
No cais da nova nau das descobertas

Existe um rio
A sina de quem nasce fraco ou forte
O risco, a raiva e a luta de quem cai
Ou que resiste
Que vence ou adormece antes da morte

No teu poema
Existe a esperança acesa atrás do muro
Existe tudo o mais que ainda escapa
E um verso em branco à espera de futuro»

Poema de José Luís Tinoco

Cortesia de Wikipedia

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