domingo, 24 de janeiro de 2021

A História de uma Serva. Margaret Atwood. «O sino que mede o tempo está tocando. O tempo aqui é medido por sinos, como outrora nos conventos de freiras»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Uma cadeira, uma cama, um abajour. Acima no tcto branco, um ornamento em relevo em forma de coroa de flores, e no centro dele um espaço vazio, coberto de emboço, como o lugar num rosto onde o olho foi tirado fora. Outrora deve ter havido um lustre, um candelabro. Eles tinham removido qualquer coisa em que pudesse amarrar uma corda. Uma janela, duas cortinas brancas. Sob a janela, um assento com uma pequena almofada. Quando a janela está parcialmente aberta, ela só se abre parcialmente, o ar pode entrar e fazer as cortinas se mexerem. Posso sentar na cadeira ou no banco pegado à janela, as mãos com os dedos entrelaçados, e observar isso. A luz do sol também entra pela janela e bate no soalho, que é feito de madeira, em ripas estreitas, muito bem enceradas. Há um tapete no chão, oval, feito de retalhos trançados. Esse é o tipo de toque de que eles gostam: arte folclórica, arcaica, feita por mulheres, nas suas horas livres, de coisas que não têm mais utilidade. Um retorno aos valores tradicionais. Quem tudo economiza tem tudo que precisa. Não estou sendo desperdiçada. Porque ainda preciso?

Na parede acima da cadeira, um quadro, emoldurado, mas sem vidro: uma estampa de flores, íris azuis, guache. Flores ainda são permitidas. Será que cada uma de nós tem a mesma estampa, a mesma cadeira, as mesmas cortinas brancas, eu gostaria de saber? Distribuídas pelo governo? Pense nisso como estar servindo no exército, dizia tia Lydia. Uma cama. De solteiro, colchão de dureza média, coberto por uma colcha aveludada branca. Nada acontece na cama senão o sono; ou a falta de sono. Tento não pensar demais. Como outras coisas agora, os pensamentos têm que ser racionados. Há muita coisa em que não é produtivo pensar. Pensar pode prejudicar suas chances, e eu pretendo durar. Sei porque não há nenhum vidro, na frente do quadro de íris azuis, e por que a janela só se abre parcialmente e porque o vidro nela é inquebrável. Não é de fugas que eles têm medo. Não iríamos muito longe. São daquelas outras fugas, aquelas que pode abrir em si mesma, se tiver um instrumento cortante. Muito bem. Excepto por esses detalhes, isso poderia ser um quarto de hóspedes de uma faculdade, para os visitantes menos importantes; ou um quarto de pensão, de tempos antigos, para senhoras em reduzidas condições de vida. Isso é o que somos agora. As condições de vida foram reduzidas; para aquelas dentre nós que ainda têm condições de vida. Mas uma cadeira, luz do sol, flores: essas coisas não devem ser descartadas. Estou viva, eu vivo, respiro, estendo minha mão para fora, aberta, para a luz do sol. Estar onde estou não é uma prisão e sim um privilégio, como dizia tia Lydia, que era apaixonada por ou isto ou aquilo.

O sino que mede o tempo está tocando. O tempo aqui é medido por sinos, como outrora nos conventos de freiras. Também como nos conventos, existem poucos espelhos. Eu me levanto da cadeira, avanço meus pés para a luz do sol, nos sapatos vermelhos, sem salto para poupar a coluna e não para dançar. As luvas vermelhas estão sobre a cama. Pego-as, enfio-as nas minhas mãos, dedo por dedo. Tudo, excepto a touca de grandes abas ao redor de minha cabeça, é vermelho: da cor do sangue, que nos define. A saia desce à altura dos meus tornozelos, rodada, franzida e presa a um corpete de peitilho liso que se estende sobre os seios, as mangas são bem largas e franzidas. As toucas brancas também seguem o modelo padronizado; são destinadas a nos impedir de ver e também de sermos vistas. Nunca fiquei bem de vermelho, não é a minha cor. Apanho a cesta de compras e a enfio no braço.

A porta do quarto, não do meu quarto, eu me recuso a dizer meu, não está trancada. Na verdade, ela não se fecha direito. Saio para o corredor bem encerado, que tem uma passadeira no centro, de um tom rosa-acinzentado. Como uma trilha aberta em meio à floresta, como um tapete para a realeza, mostra-me o caminho. O tapete faz uma curva e desce a escadaria da frente e sigo por ele, com uma das mãos no corrimão, outrora uma árvore, abatida e transformada noutro século, polida até adquirir um brilho intenso. Do fim do período vitoriano, a casa é uma residência de família, construída para uma família rica e numerosa. Há um relógio de pé no vestíbulo, que distribui o tempo em quinhões, e então a porta que dá para a maternal sala-de-estar da frente, com seus tons rosados e pequenos toques sugestivos. Uma sala onde nunca me sento, apenas fico de pé ou me ajoelho. No final do vestíbulo, acima da porta da frente há uma bandeira semicircular de vidro colorido: flores vermelhas e azuis». In Margaret Atwood, A História de uma Serva, 1985, Bertrand Editora, 2013, ISBN 978-972-252-577-0.

Cortesia de BertrandE/JDACT

JDACT, Margaret Atwood, Literatura, Crónica,