A história de um médico do século XIX
«Ao migrar da Escócia para os Estados
Unidos, Robert J. Cole já dominava o ofício da medicina. Mas não era só isso:
um raríssimo dom familiar o diferenciava de outros médicos. Estabelecendo-se na
fronteira de Illinois, em pleno século XIX, ele entrará em contacto com uma
América marcada por intensos conflitos políticos e militares, e pelo genocídio
da população indígena. É com uma sacerdotisa chamada Makwa que Cole irá
aprender os saberes milenares que usará junto com seu conhecimento científico.
A sabedoria e o dom serão herdados por seu filho, um menino surdo que recebe o
nome de Xamã e passa zelar pela tradição da família. Continuação do grande
sucesso O Físico, Xamã expande a trajetória da família Cole, aprofundando sua
relação com a história da Medicina. Tendo como pano de fundo a guerra civil
americana e a vida em uma sociedade preconceituosa que dificulta muitas vezes a
prática sagrada da medicina, Noah Gordon conduz com maestria a narrativa em que
o protagonista ora é Robert J. Cole, ora é Xamã. O livro recebeu o primeiro
James Fenimore Cooper Prize, em 1993, por melhor romance histórico
norte-americano». In Sinopse
1864
«O
Spirit of Des Moines enviou sinais anunciando a sua chegada na estação de
Cincinnati, Xamã pode percebê-los, primeiro como um tremor quase imperceptível
na plataforma, depois uma vibração acentuada e então toda a estação pareceu
estremecer. De repente, lá estava o monstro com seu cheiro de metal quente e
vapor, avançando para ele na meia-luz acinzentada e tristonha, os bronzes
reluzindo no corpo negro do dragão, os braços fortes dos pistões movendo-se, a
pálida nuvem de fumaça subindo como o esguicho de uma baleia, esgarçando e
dissolvendo no ar, quando a locomotiva parou, deslizando sobre os carris. Ele
embarcou e alojou-se no terceiro vagão, onde havia poucos bancos vazios e, com
um estremecimento, o comboio continuou a viagem. Os trens eram uma invenção
fantástica, mas estar neles significava viajar com muitas outras pessoas. Ele
preferia cavalgar sozinho, absorto em pensamentos. O vagão comprido estava
abarrotado de soldados, caixeiros, viajantes, fazendeiros e mulheres, com ou
sem filhos pequenos. O choro das crianças não o incomodava, é claro; mas o ar
no vagão estava impregnado de uma mistura de odores, meias muito usadas,
fraldas sujas, má digestão, corpos suados e mal lavados e a fumaça de charutos
e cachimbos. As janelas pareciam feitas para desafiar a força e a paciência,
mas ele era grande e forte e finalmente conseguiu levantar o vidro, o que,
verificou imediatamente, foi um erro. Três carruagens à frente, a chaminé da
locomotiva lançava para o ar, além da fumaça, uma mistura de fuligem, brasas
vivas e cinza que, atraídas para trás pela velocidade do trem, entravam pela
janela. Não demorou para que uma brasa caísse no casaco novo de Xamã.
Tossindo e resmungando furioso,
ele fechou a janela e bateu no casaco até apagar o fogo. No outro lado da
passagem, uma mulher olhou rapidamente para ele e sorriu. Era uns dez anos mais
velha do que Xamã, com um vestido elegante de lã cinzenta, próprio para viagem,
sem anquinhas, enfeitado com debruns de linho azul que acentuavam os cabelos louros.
Seus olhos se encontraram por um momento e ela voltou novamente a atenção para a
renda de bilros que trazia ao colo. Xamã também desviou os olhos
tranquilamente; não convinha se dedicar aos jogos de sedução entre homem e
mulher durante o período de luto. Xamã trazia consigo um livro importante para
ler, mas sempre que tentava concentrar-se, seu pensamento voava até ao pai. O
condutor aproximou-se por trás dele e Xamã só o percebeu quando a mão do homem tocou
seu ombro. Surpreso, ergueu os olhos para o rosto corado, para o bigode com pontas
enceradas e a barba vermelha com fios brancos, que Xamã gostou, porque deixava
a boca bem visível. O senhor deve estar surdo!, disse o homem, jovialmente. Pedi
a sua passagem três vezes, senhor! Xamã não se alterou, pois isso não era
novidade para ele. Sim, eu sou surdo, disse, entregando a passagem.
Olhou
pela janela, mas a vasta pradaria que passava lá fora não conseguiu prender sua
atenção. O terreno sempre plano era monótono e tudo passava tão depressa que não
chegava a ficar registado na sua mente. O melhor meio de viajar era a pé ou a
cavalo; se chega a uma parada e sente fome ou vontade de urinar, pode entrar e
satisfazer as suas necessidades. No comboio, os lugares passam e desaparecem
numa névoa indistinta. O livro que estava lendo era Hospital Sketches, escrito
por uma mulher de Massachusetts, chamada Alcott, enfermeira, que vinha tratando
os feridos desde o começo da guerra e cuja descrição das horríveis condições
dos hospitais do exército estava criando muita agitação nos círculos médicos. Não
era uma boa leitura para ele, porque o fazia pensar no sofrimento pelo qual
devia estar passando seu irmão Maior, desaparecido em acção numa patrulha de
reconhecimento do exército confederado. Se, pensou Xamã, Maior não estivesse entre
os mortos anónimos. Seu pensamento voltou para o pai, pela trilha da dor
imensa, e ele começou a olhar em volta, com desespero» In Noah Gordon, Xamã, A História
De Um Médico Do Século XIX, 1992, Editora Rocco, 1993, ISBN 978-858-122-049-9.
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