quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Codex 632. José Rodrigues dos Santos. «Tomás concluiu tratar-se de uma estrangeira, era raro em Portugal aquele tipo de loiras tão clarinhas… Os cientistas franceses olharam para a pedra, identificaram caracteres gregos…»

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Prologo

«Como assim, professor?, adiantou uma estudante sentada à esquerda, uma gordinha baixa e de óculos, habitualmente das mais atentas e participativas. Tinha um ar prendado, devia ser católica. Então não foi a pedra de Roseta que forneceu a chave do significado dos hieróglifos? Tomás sorriu. A desvalorização da importância da pedra de Roseta, implícita no seu tom, produzira o efeito que desejava. Acordara a sala.

Sim, deu uma ajudinha. Mas houve muito mais do que isso. Uma nova aluna entrou na sala e o professor observou-a de relance, distraidamente. Como vocês sabem, durante séculos... Hesitou, retendo a atenção na recém-chegada. Uh... durante séculos... os hieróglifos... Era uma rapariga que nunca tinha visto. Os hieróglifos permaneceram... uh... eles permaneceram um grande mistério. A rapariga desconhecida foi sentar-se na última fila, isolada de todos e, por esta altura, observada por todos. Os... uh... hieróglifos mais antigos... Tinha um cabelo loiro aos canudos, brilhante e vivo, e um corpo voluptuoso. Pois... os primeiros hieróglifos remontam a... uh... três mil anos antes de Cristo. Tomás fez um esforço para se concentrar na matéria e obrigou-se a desviar o olhar da rapariga, percebeu que não lhe ficava bem permanecer embasbacado a observá-la e continuar a gaguejar.

Os... uh... hieróglifos permaneceram quase inalterados durante mais de três mil anos, até que, no final do século IV d. C, deixaram de ser usados. O seu uso e a sua leitura perderam-se subitamente, no espaço de apenas uma geração. E sabem porquê? A classe permaneceu em silêncio. Ninguém sabia. Os egípcios ficaram amnésicos?, gracejou um aluno, um dos raros rapazes que integravam a turma. Risinhos na sala, as raparigas achavam-lhe graça. Por causa da Igreja cristã, explicou o professor com um sorriso forçado. Os cristãos proibiram os egípcios de usarem os hieróglifos. Queriam cortar com o seu passado pagão, queriam obrigá-los a esquecerem Ísis, Osíris, Anúbis, Horus e toda aquela imensa corte de deuses. O corte foi de tal modo radical que o conhecimento da antiga escrita pura e simplesmente desapareceu. O professor fez um gesto rápido. Puf!, soprou. De um momento para o outro, nem uma única pessoa se tornou capaz de perceber o que os hieróglifos queriam dizer. A velha escrita egípcia passou à história enquanto o diabo esfrega um olho.

Tomás atreveu-se, agora que já tinha decorrido pelo menos um minuto, a mirar de fugida a recém-chegada. O interesse pelos hieróglifos manteve-se hibernado e só se reacendeu no final do século XVI, quando, por influência de um livro misterioso, intitulado Hypnerotomachia Poliphili, de Francesco Colonna, o papa Sisto V mandou colocar obeliscos egípcios nas esquinas das novas avenidas de Roma. Tomás achou-a uma deusa, embora de um género decerto diferente de Ísis. Os eruditos começaram a tentar decifrar aquela escrita, mas não percebiam nada, achavam estarem diante de semagramas, caracteres que representavam ideias completas.

Ela era mais do género das divindades nórdicas. Quando Napoleão invadiu o Egipto, mandou vir atrás de si uma equipa de historiadores e cientistas com a missão de cartografarem, registarem e medirem tudo o que encontrassem. Uma espécie de cortesã para animar os festins de Tor e Ódin. Essa equipa chegou ao Egipto em 1798 e, no ano seguinte, foi chamada pelos soldados estacionados no Fort Julien, no delta do Nilo, para ver uma coisa que eles encontraram na cidade de Roseta, ali nas proximidades. A loira tinha olhos de um azul--turquesa cristalino, a pele de um branco lácteo e irradiava uma beleza espampanante, daquelas particularmente apreciadas pelos homens e desprezadas pelas mulheres.

Os soldados tinham recebido a missão de demolirem uma parede, de modo a abrirem caminho para o forte que ocupavam, quando descobriram, inserida na parede, uma pedra com três tipos de inscrição. Tomás concluiu tratar-se de uma estrangeira, era raro em Portugal aquele tipo de loiras tão clarinhas. Os cientistas franceses olharam para a pedra, identificaram caracteres gregos, demóticos e hieróglifos, concluíram que se tratava do mesmo texto nas três línguas e aperceberam-se imediatamente da importância da descoberta. Seria alemã? O problema é que as tropas britânicas avançaram sobre o Egipto e derrotaram as francesas, e a pedra, que era suposto ser enviada para Paris, acabou por ser remetida para o Museu Britânico, em Londres. Podia ser italiana ou francesa, mas Tomás apostava num país nórdico. A tradução do grego revelou que a pedra continha um decreto da assembleia dos sacerdotes egípcios, registando os benefícios que o faraó Ptolemeu concedera ao povo do Egipto e as honras que, em troca, os sacerdotes endereçaram ao faraó». In José Rodrigues dos Santos, Codex 632, Gradiva, 2005, ISBN 978-989-616-072-2.

Cortesia de Gradiva/JDACT

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