quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Memorial do Convento. José Saramago. «Foi Blimunda quem veio abrir a porta. Estava escurecendo a tarde, mas ela reconheceu o vulto do padre que desmontava, quatro anos não é tanto tempo assim…»

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«É cedo ainda para estes acidentes. Quando o padre Bartolomeu Lourenço, na última volta do caminho, começou a descer para o vale, deu com uma multidão de homens, exagero será dizer multidão, enfim, umas centenas deles, e primeiro não entendeu o que se passava, porque toda aquela gente estava correndo a um lado, ouvia-se tocar uma trombeta, seria festa, seria guerra, deram então em rebentar tiros de pólvora, terra e pedras violentamente atiradas aos ares, foram os tiros vinte, tornou a tocar a trombeta, agora diferente toque, e os homens avançaram para o terreno revolvido, com carros de mão e pás, enchendo aqui, no monte, despejando além, na encosta para Mafra, ao passo que outros homens, de enxada ao ombro, desciam aos caboucos já fundos, neles desapareciam, enquanto mais homens lançavam cestos para dentro e depois os puxavam para cima, cheios de terra, e os iam despejar afastadamente, aonde outros homens iam por sua vez encher carros de mão, que lançavam no aterro, não há diferença nenhuma entre cem homens e cem formigas, leva-se isto daqui para ali porque as forças não dão para mais, e depois vem outro homem que transportará a carga até à próxima formiga, até que, como de costume, tudo termina num buraco, no caso das formigas lugar de vida, no caso dos homens lugar de morte, como se vê não há diferença nenhuma.

Com os calcanhares, o padre Bartolomeu Lourenço tocou para diante a mula, experiente animal que nem com a artilharia se assustara, é o que faz não ser de raça pura, estes já viram muito, a mestiçagem tornou-os pouco espantadiços, que é a maneira melhor de viverem neste mundo as bestas e os homens. Pelo caminho atascado de lama, sinal de que as fontes da terra andavam perdidas naquela comoção e surdiam onde não podiam aproveitar-se, ou em muito delgadas linfas se dividiam até de todo se separarem os átomos da água e ficar o monte seco, por esse caminho, tocando suavemente a mula, desceu o padre Bartolomeu Lourenço à vila e foi perguntar ao vigário onde moravam os Sete-Sóis. Tinha este pároco feito um bom negócio de terrenos por serem dele algumas das terras do alto da Vela, e, ou por valerem elas muito, ou por muito valer o proprietário, fez-se a avaliação pelo alto, cento e quarenta mil réis, nada que se possa comparar com os treze mil e quinhentos que foram pagos a João Francisco.

É um vigário feliz, com a promessa de tão grande convento, oitenta frades confirmados, ali mesmo à porta de casa, com o que muito crescerá a vila em baptizados, casamentos e passamentos, cada sacramento dispensando a sua parte material e espiritual, desta maneira tanto se reforçando a burra como a esperança de salvação, na directa razão dos vários actos e prestações, Pois, padre Bartolomeu Lourenço, é grande honra minha recebê-lo nesta casa, os Sete-Sóis moram aqui perto, tinham um terreno ao lado dos meus no alto da Vela, mais pequeno, deve-se dizer, agora o velho e a família vivem de granjear um casal que tinham de renda, quem voltou há quatro anos foi o filho, o Baltasar, veio da guerra maneta, maneta da guerra, quero dizer, e trouxe mulher, acho que não estão casados à face da Santa Igreja, e ela tem um nome nada cristão, Blimunda, disse o padre Bartolomeu Lourenço, Conhece-a, Fui eu que os casei, Ah, então sempre são casados, Fui eu que os casei, em Lisboa, e tendo o Voador agradecido, que ali não era conhecido por tal, as efusões do vigário só tinham que ver com as particulares recomendações do paço, saiu a procurar os Sete-Sóis, contente por assim ter mentido à face de Deus e saber que Deus não se importava, um homem tem de saber, por si próprio, quando as mentiras já nascem absolvidas.

Foi Blimunda quem veio abrir a porta. Estava escurecendo a tarde, mas ela reconheceu o vulto do padre que desmontava, quatro anos não é tanto tempo assim, beijou-lhe a mão, não andassem por ali vizinhos curiosos e seria diferente a saudação, que estes dois, estes três, quando estiver Baltasar, têm razões do coração que os governam, e, em tantas noites passadas, uma terá havido, pelo menos, em que sonharam o mesmo sonho, viram a máquina de voar batendo as asas, viram o sol explodindo em luz maior, e o âmbar atraindo o éter, o éter atraindo o íman, o íman atraindo o ferro, todas as coisas se atraem entre si, a questão é saber colocá-las na ordem justa, e então se quebrará a ordem, Esta é a minha sogra, senhor padre Bartolomeu, aproximara-se Marta Maria, intrigada por não ouvir palavras, sendo certo que Blimunda fora abrir a porta sem que alguém a ela batesse, e agora estava ali um padre novo que perguntava por Baltasar, não é assim que costumam passar-se as visitas deste tempo, mas há excepções, como em todos os tempos sempre se disse, vir um padre de Lisboa a Mafra para falar a um soldado manco, e a uma mulher que é visionária da pior maneira, porque vê o que existe, como já secretamente o sabe Marta Maria que, queixando-se de ter uma nascida na barriga, Blimunda lhe respondeu que não tinha, mas era verdade que sim e ambas o sabiam, Come o teu pão, Blimunda, come o teu pão». In José Saramago, Memorial do Convento, 1998, Editorial Caminho, 1998, ISBN 972-210-026-2.

Cortesia de ECamunho/JDACT

JDACT, José Saramago, O Saber, A Arte, Nobel da Literatura,