«John praguejou e desembainhou a espada. Os outros homens começaram a avançar às apalpadelas pela escuridão. Reyna estava encostada à parede de pedra, de frente para John, o escudeiro. À medida que os minutos passavam e ela não se rebelava, uma sensação vaga de relaxamento apoderou-se dele. Por fim, a ponta da lâmina caiu do peito dela e ele mudou de posição e também se encostou à pedra. Ela esforçava-se por ouvir sons da torre, mas a noite continuava silenciosa. Imaginou Ian e os outros a deslizarem do túnel para a passagem na muralha norte, a esgueirarem-se pelas sombras até à porta de armas, e a abaterem os guardas um por um.
O
vosso amo parece ser um grande guerreiro. Lá isso é, concordou John, orgulhoso.
Poucos conseguem estar à altura da sua espada, e ele é campeão de muitas justas
e torneios. Lançou-se numa descrição de uma justa em particular, na Bretanha, e
Reyna alimentava o seu discurso com perguntas, incitando-o a sentir-se à
vontade com ela. Ainda não se ouvia som algum da torre. Ele deve ser muito
famoso em Inglaterra. John deu uma risada. É, com toda a certeza, mas não da
maneira que pensais. O grosso dos seus combates teve lugar em França, com esta
companhia livre que ele trouxe para aqui quando sir Morvan os tomou ao serviço.
Ele fez-se líder deles há muitos anos.
Reyna
sabia alguma coisa sobre companhias livres, os bandos de soldados independentes
e cavaleiros sem terra que se ofereciam a barões e reis em troca de soldo.
Quando não tinham compromissos profissionais continuavam as suas conquistas de
forma independente, montando cercos que levantariam se fosse pago um resgate.
Haviam-se tornado um problema sério em França, assediando povoações e quintas.
Se Morvan Fitzwaryn contratara desordeiros deste calibre para este cerco, isto
não abonava nada pelo futuro da sua gente. Ele lutou em Poitiers no ano passado
com o Príncipe Negro, acrescentou John, defensivo, como se pressentisse a desaprovação
dela. Salvou a vida a sir Morvan lá. Morvan tem uma velha contenda com a
família Beaumanoir da Bretanha, e foram atrás dele no campo. Ian nem sequer
sabia quem ajudava, apenas viu os cavaleiros a tentar derrubar Morvan e entrou
na luta por desporto.
Tal
heroísmo torná-lo-ia decerto famoso. Não, não é isso. Não em Inglaterra. Aqui
penso que ele é mais conhecido pelo jeito que tem com as mulheres. Sir Ian é um
homem atraente, não posso negá-lo. Isso é dizer que o mar é uma poça de água. O
meu amo tem de enxotar as mulheres com a espada. Sejam grandes senhoras ou
criadas de cozinha, atiram-se todas a ele. Ele soltou um suspiro de admiração e
depois inclinou-se, conspirador, na direcção dela. Quando cá regressámos,
disseram-me que, em Windsor, a corte lhe tinha atribuído um nome especial, como
um título. Um nome especial? Um título honorífico? Sim. Ela quase conseguia
ouvir o sorriso afectado do jovem. Em Windsor e Londres é conhecido como O
Senhor das Mil Noites.
Reyna
desatou às gargalhadas e John, desrespeitosamente, acompanhou-a. Isto era muito
bom. Havia homens que recebiam designações baseadas nos seus feitos audazes. O
Herói disto e daquilo. Ian de Guilford fora imortalizado pelo número de vezes
que havia fornicado. Enquanto conversava com John, Reyna não parou de tatear o
chão com o pé. Quando o riso desvaneceu, ela encontrou o que procurara. Isto
foi um erro, disse ela. Não, minha senhora. sir Ian também acha isto divertido.
Não
me referia a isso. Eu estive enfiada naquela tenda durante muito tempo, e a rir…
o que quero dizer é que preciso de… Precisais de?… Ah! Talvez pudésseis
aguardar um pouco à entrada, sugeriu ela. Assim, certamente que eu não
conseguiria sair. Ele ponderou, depois avançou alguns passos e posicionou-se,
de costas voltadas, à entrada. Reyna aninhou-se e deparou com o pequeno
pedregulho que o seu pé tinha tocado. Erguendo-o com ambas as mãos, avançou
cuidadosamente na direcção de um John incauto. Erguendo-a por cima da cabeça,
deixou-a cair. O jovem estatelou-se redondo no chão. Enchendo a mente de temor
pela sua gente, para afastar os terrores da infância, avançou apressada pelo
túnel de pedra. Sentia-se dominada por emoções contraditórias. Determinação
letal. Resignação apática. Preocupação dilacerante.
E,
permeando-as a todas, sem cessar, os tentáculos do terror que se esticavam na
escuridão implacável para a enredar. A quinze metros do fim, a mão dela
encontrou a abertura que procurava. Outro túnel desviava-se a partir daqui, a
um ângulo estranho do túnel principal, quase invisível mesmo com um archote. Este
continuava por baixo do pátio até à própria torre. Ela entrou, abaixada,
correndo mais veloz, pois de certeza que, a esta altura, Ian já teria chegado à
porta de armas. Alcançou finalmente as escadas e, detendo-se apenas um segundo
para recuperar o fôlego, deu início à longa subida pelas paredes da torre. Degraus
de pedra, um monte deles, erguiam-se na escuridão. Mal conseguia respirar quando,
por fim, conseguiu chegar lá acima. Exausta e com as pernas bambas, empurrou a
parede de pedra. A parte de baixo cedeu e ela caiu no quarto principal.
Ficou
deitada no chão, debatendo-se para respirar, deleitando-se com a luz que a
banhava. Num primeiro momento, assumiu que o aposento estava vazio, de tão
absoluto que era o silêncio. Depois, uns braços fortes agarraram nela e
ergueram-na. Ela olhou para o rosto bondoso e preocupado de sir Reginald. A
porta de armas, disse, arquejante. Eles estão cá dentro e vão abri-la para os
outros entrarem. O quê?, disse uma voz estrondosa atrás dela. Ela virou-se e
deparou com sir Thomas Armstrong e cinco outros cavaleiros. Ela viera aterrar
no meio de um conselho. Eles transpuseram a muralha e estão cá dentro. Ignorou
o olhar desconfiado que Thomas lançou ao seu vestido rasgado e ao cabelo solto.
Um pequeno grupo entrou pelo túnel. Tomarão a porta de armas e levantarão a
grade». In Madeline Hunter, Mil Noites de Paixão, 2002, Edições ASA, 2012, ISBN
978-989-231-672-7.
JDACT, Madeline Hunter, Literatura, Idade Média,