O que a Idade Média nos Deixou
«Ainda
hoje usamos, em grande parte, a herança desta época. Embora conhecendo já
outras fontes de energia, ainda usamos os moinhos movidos pela água ou pelo vento, já conhecidos dos antigos, na China e
na Pérsia, mas que só depois do ano 1000 são introduzidos e aperfeiçoados no
Ocidente. E parece que deste legado se deve fazer bom uso agora que, com a
crise do petróleo, se reconsidera seriamente a energia eólica. A Idade Média
aprende muito da medicina árabe, mas em 1316 Mondino de Liuzzi publica o seu
tratado de anatomia e efectua as primeiras dissecções anatómicas de corpos
humanos, dando início à ciência anatómica e à prática cirúrgica no sentido
moderno do termo.
As nossas paisagens ainda estão consteladas de abadias românicas e
as nossas cidades conservam catedrais góticas onde os devotos ainda hoje vão
assistir às cerimónias religiosas. A Idade Média inventa as liberdades comunais
e um conceito de livre participação de todos os cidadãos nos destinos da
cidade, e ainda hoje as autoridades citadinas residem nos palácios destas
comunas. Nestas mesmas cidades, surgem as universidades: a primeira aparece,
se bem que em forma embrionária, no ano de 1088 em Bolonha; é
a primeira vez que uma comunidade de professores e estudantes, com os primeiros
na dependência económica dos segundos, se constituiu fora do poder do Estado ou
da Igreja.
Nascem nestas mesmas cidades várias formas de economia mercantil e
nelas têm origem a banca, a carta de crédito, o cheque e a letra de câmbio. Mas
são inúmeras as invenções medievais que nós ainda hoje usamos como se fossem coisas
do nosso tempo: a chaminé, o papel (que substituiu o pergaminho), os algarismos
árabes (adoptados no século XIII com o Liber Abaci, de Leonardo Fibonacci), a contabilidade
por partidas dobradas e, com Guido d’Arezzo, os nomes das notas musicais, e há
quem mencione ainda os botões, as cuecas, as camisas, as luvas, as gavetas dos
móveis, as calças, as cartas de jogar, o xadrez e os vitrais. É na Idade Média
que se começa a comer sentado à mesa (os romanos comiam reclinados em leitos) e
a usar garfo; e é também na Idade Média que aparece o relógio de escapo,
antepassado directo dos relógios mecânicos modernos.
Ainda hoje assistimos com frequência a contendas entre o Estado e
a Igreja e experimentamos sob formas diferentes o terrorismo místico dos
entusiastas de outrora; é da Idade Média que herdamos o hospital, e as
nossas organizações turísticas continuam a inspirar-se na gestão das grandes
vias de peregrinação. Inspirando-se nas pesquisas dos árabes, a Idade Média
presta muita atenção à óptica, e Roger Bacon declarava que era a nova ciência
destinada a revolucionar o mundo: Esta ciência é indispensável para o estudo
da teologia e para o mundo… A vista mostra-nos toda a variedade das
coisas, e por ela se abre o caminho para o conhecimento de todas as coisas,
como resulta da experiência. E são os estudos de óptica, juntamente com a
experiência dos mestres vidreiros, que conduzem à invenção, quase casual e de origens
um tanto ou quanto obscuras (há quem mencione Salvino degli Armati, em 1317, e
quem recue até ao século XIII, com Fra Alessandro della Spina), de uma coisa
que desde então se não tem modificado muito: os óculos. À parte o uso
que ainda hoje fazemos deles, os óculos exerceram uma influência de grande
alcance na evolução do mundo moderno. Todos os seres humanos tendem a sofrer de
presbiopia depois dos quarenta anos, e podemos considerar que numa época em que
se lia por manuscritos, e durante metade do dia à luz de velas, a actividade de
um estudioso se reduzia temivelmente a partir de uma certa idade. Mercê dos óculos,
os estudiosos, os comerciantes e os artífices prolongaram e aumentaram as suas capacidades
de aplicação. É como se as energias intelectuais daqueles séculos tivessem
duplicado ou até decuplicado, subitamente. Se pensarmos como foi útil para o
desenvolvimento científico norte-americano o facto de ter havido algumas dezenas
de cientistas judeus que, fugindo ao nazismo, foram enriquecer a ciência e a técnica
do Novo Continente (é em grande parte a eles que se deve o descobrimento da
energia atómica e as suas aplicações), teremos uma pálida ideia do que a invenção
dos óculos significou». In Umberto Eco,
Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote,
2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.
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