segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Umberto Eco. Idade Média. «… há quem mencione Salvino degli Armati, em 1317, e quem recue até ao século XIII, com Fra Alessandro della Spina), de uma coisa que desde então se não tem modificado muito: os óculos…»

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O que a Idade Média nos Deixou

«Ainda hoje usamos, em grande parte, a herança desta época. Embora conhecendo já outras fontes de energia, ainda usamos os moinhos movidos pela água ou pelo vento, já conhecidos dos antigos, na China e na Pérsia, mas que só depois do ano 1000 são introduzidos e aperfeiçoados no Ocidente. E parece que deste legado se deve fazer bom uso agora que, com a crise do petróleo, se reconsidera seriamente a energia eólica. A Idade Média aprende muito da medicina árabe, mas em 1316 Mondino de Liuzzi publica o seu tratado de anatomia e efectua as primeiras dissecções anatómicas de corpos humanos, dando início à ciência anatómica e à prática cirúrgica no sentido moderno do termo.

As nossas paisagens ainda estão consteladas de abadias românicas e as nossas cidades conservam catedrais góticas onde os devotos ainda hoje vão assistir às cerimónias religiosas. A Idade Média inventa as liberdades comunais e um conceito de livre participação de todos os cidadãos nos destinos da cidade, e ainda hoje as autoridades citadinas residem nos palácios destas comunas. Nestas mesmas cidades, surgem as universidades: a primeira aparece, se bem que em forma embrionária, no ano de 1088 em Bolonha; é a primeira vez que uma comunidade de professores e estudantes, com os primeiros na dependência económica dos segundos, se constituiu fora do poder do Estado ou da Igreja.

Nascem nestas mesmas cidades várias formas de economia mercantil e nelas têm origem a banca, a carta de crédito, o cheque e a letra de câmbio. Mas são inúmeras as invenções medievais que nós ainda hoje usamos como se fossem coisas do nosso tempo: a chaminé, o papel (que substituiu o pergaminho), os algarismos árabes (adoptados no século XIII com o Liber Abaci, de Leonardo Fibonacci), a contabilidade por partidas dobradas e, com Guido d’Arezzo, os nomes das notas musicais, e há quem mencione ainda os botões, as cuecas, as camisas, as luvas, as gavetas dos móveis, as calças, as cartas de jogar, o xadrez e os vitrais. É na Idade Média que se começa a comer sentado à mesa (os romanos comiam reclinados em leitos) e a usar garfo; e é também na Idade Média que aparece o relógio de escapo, antepassado directo dos relógios mecânicos modernos.

Ainda hoje assistimos com frequência a contendas entre o Estado e a Igreja e experimentamos sob formas diferentes o terrorismo místico dos entusiastas de outrora; é da Idade Média que herdamos o hospital, e as nossas organizações turísticas continuam a inspirar-se na gestão das grandes vias de peregrinação. Inspirando-se nas pesquisas dos árabes, a Idade Média presta muita atenção à óptica, e Roger Bacon declarava que era a nova ciência destinada a revolucionar o mundo: Esta ciência é indispensável para o estudo da teologia e para o mundoA vista mostra-nos toda a variedade das coisas, e por ela se abre o caminho para o conhecimento de todas as coisas, como resulta da experiência. E são os estudos de óptica, juntamente com a experiência dos mestres vidreiros, que conduzem à invenção, quase casual e de origens um tanto ou quanto obscuras (há quem mencione Salvino degli Armati, em 1317, e quem recue até ao século XIII, com Fra Alessandro della Spina), de uma coisa que desde então se não tem modificado muito: os óculos. À parte o uso que ainda hoje fazemos deles, os óculos exerceram uma influência de grande alcance na evolução do mundo moderno. Todos os seres humanos tendem a sofrer de presbiopia depois dos quarenta anos, e podemos considerar que numa época em que se lia por manuscritos, e durante metade do dia à luz de velas, a actividade de um estudioso se reduzia temivelmente a partir de uma certa idade. Mercê dos óculos, os estudiosos, os comerciantes e os artífices prolongaram e aumentaram as suas capacidades de aplicação. É como se as energias intelectuais daqueles séculos tivessem duplicado ou até decuplicado, subitamente. Se pensarmos como foi útil para o desenvolvimento científico norte-americano o facto de ter havido algumas dezenas de cientistas judeus que, fugindo ao nazismo, foram enriquecer a ciência e a técnica do Novo Continente (é em grande parte a eles que se deve o descobrimento da energia atómica e as suas aplicações), teremos uma pálida ideia do que a invenção dos óculos significou». In Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

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