sexta-feira, 17 de novembro de 2023

O Último Catão. Matilde Asensi.«Os guardas suíços postados na entrada das dependências diplomáticas da Santa Sé nem sequer pestanejaram ao nos ver passar. Assim o sacerdote secretário que controlava as entradas e saídas…»

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«Nosso material era único, insubstituível e, quando dentro de mil anos, ou de dois mil, alguém quisesse consultar a carta de Guyúk a Inocêncio IV, devia poder fazê-lo. Assim, simples. O que aconteceria a um empregado do museu de Louvre que deixasse aberto, um vidro de tinta sobre o marco da Gioconda...? Desde que estava à frente do Laboratório de restauração e paleografia do Arquivo Secreto Vaticano, nunca permitira erros semelhantes em minha equipe, todos sabiam, e não ia consentir agora. Enquanto apertava o botão do elevador, estava plenamente consciente de que meus funcionários não me apreciavam muito. Não era a primeira vez que notava em minhas costas seus olhares carregados de reprovação, assim não me permitia pensar que contava com sua estima.

Com certeza, não acreditava que conseguir o afecto de meus subordinados ou de meus superiores fosse o motivo pelo qual há oito anos atrás, me deram a direcção do Laboratório. Afligia-me profundamente despedir o irmão Buzzonetti, e só eu sabia como me ia sentir durante os próximos meses, mas era por tomar esse tipo de decisão que eu chegara até onde me encontrava. O elevador parou silenciosamente no quarto andar inferior e abriu suas portas para me dar passagem. Coloquei a chave de segurança no painel, passei meu cartão identificador pelo leitor eletrónico e apertei o zero. Instantes depois, a luz do sol, que entrava pelas grandes janelas do edifício desde o pátio de San Damásio, colou em minha cabeça como uma faca, me cegando e aturdindo.

A atmosfera artificial dos andares inferiores bloqueava os sentidos e incapacitava para distinguir a noite do dia e, em mais de uma ocasião, quando me achava ensimesmada em algum trabalho importante, surpreendera a mim mesma saindo do edifício do Arquivo nas primeiras luzes do dia seguinte, totalmente alheia ao passar do tempo. Piscando, olhei distraída para o meu relógio de pulso; era uma em ponto. Para minha surpresa, o Reverendíssimo Padre Guglielmo Ramondino, em lugar de me esperar comodamente em sua sala, como eu imaginava, andava de um lado para o outro no enorme vestíbulo, com um grave gesto de impaciência no rosto. Doutora Salina, murmurou, me apertando a mão e se encaminhando até a saída, Acompanhe-me, por favor. Temos muito pouco tempo. Fazia calor no Jardim Belvedere naquela manhã de princípios de Março. Os turistas nos olharam avidamente desde as janelas dos corredores da pinacoteca como se fossemos exóticos animais de um extravagante zoológico. Sempre me sentia muito estranha quando caminhava pelas áreas públicas da cidade e não havia nada que me irritasse mais do que dirigir o olhar a qualquer ponto por cima de minha cabeça e encontrar, me apontando, a objectiva de uma câmara fotográfica. Por desgraça, certos prelados curtiam isso, exibindo sua condição de habitantes do menor estado do mundo e o padre Ramondino era um deles. Vestido de clérigo, mas com a batina aberta, seu enorme corpanzil de camponês lombardo se deixava ver há vários quilómetros de distância. Preocupou-se em me levar até às dependências da Secretaria de Estado, no primeiro andar do Palácio Apostólico, pelos lugares mais próximos do percorrido pelos turistas e, enquanto me contava que íamos ser recebidos em pessoa por Sua Eminência Reverendíssima o Cardeal Ângelo Sodano, com quem, pelo que parecia, uma estreita e velha amizade os unia, despachava amplos sorrisos à direita e esquerda como se desfilasse em uma procissão provinciana no Domingo da Ressurreição.

Os guardas suíços postados na entrada das dependências diplomáticas da Santa Sé nem sequer pestanejaram ao nos ver passar. Assim o sacerdote secretário que controlava as entradas e saídas, foi quem tomou nota em seu livro de registo, de nossos nomes, cargos e ocupações. Ao final se colocou de pé e nos guiou através de uns longos corredores cujas janelas davam para a Praça de São Pedro, onde o Secretário de Estado nos aguardava. Ainda que tentasse dissimular, caminhava junto ao Prefeito com a sensação de ter um punho de aço me oprimindo o coração: apesar de saber que o assunto que estava motivando todas aquelas estranhas situações não podia estar relacionado com erros em meu trabalho, repassava mentalmente tudo que fizera durante os últimos meses à busca de qualquer facto que merecesse una reprimenda da mais alta hierarquia eclesiástica». In Matilde Asensi, O Último Catão, 2005, Editora Dom Quixote, ISBN 978-972-202-904-9.

Cortesia de EDQuixote/JDACT

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