«Ian contava com isso. Contava aumentar ainda mais a dívida que Morvan Fitzwaryn tinha para consigo. Apesar de certas tensões antigas entre eles, Ian respeitava Morvan e estava disposto a lutar esta guerra segundo os termos peculiares deste, sabendo que Morvan o recompensaria generosamente. Pagamento avultado, no mínimo, mas Ian almejava mais. Uma vez recuperada Harclow, uma vez resgatadas as terras ancestrais arrancadas das suas mãos enquanto rapaz, Morvan regressaria às propriedades da Bretanha e à sua família, que se encontrava lá. Assim, Harclow necessitaria de um senescal para a gerir e proteger.
Ian
planeava ser esse homem. Não era o mesmo que tratar das suas próprias terras,
claro. Mas era de longe melhor do que a vida de flibusteiro, de ratazana de
acampamento, que o destino lhe reservara durante os últimos quatro anos. Uma
sombra moveu-se perto de um dos acampamentos. A luz das fogueiras captou os
reflexos prateados do cabelo de Melissa enquanto ela corria, célere, de tenda
em tenda. Deteve-se na que ficava mais perto do caminho que conduzia à estrada
a norte. Anda, pequenina. Incitou Ian silenciosamente. Não percas a coragem
agora. Mostra de que és feita. Ela deu mais alguns passos rápidos, afastando-se
da colina, e ele praguejou entredentes. Mas ela deteve-se abruptamente, ficou
parada por um segundo, e depois, resoluta, deu meia-volta e encaminhou-se para
a torre. Ian lançou-se no seu encalço.
Reyna
abriu caminho através dos arbustos e encontrou a entrada da poterna. Ficou de
olhos fixos na fenda escura. Alice não estava ali para a ajudar desta vez. Cento
e quarenta metros de sepulcro subterrâneo aguardavam-na. Quinhentos passos de
escuridão absoluta e pedra asfixiante. O velho pânico de infância tentou
apoderar-se dela, e ela combateu-o desesperadamente. Regressar nunca estivera
nos seus planos. A esta hora, contava ter já roubado um cavalo e encontrar-se
na estrada noroeste. De manhã, deveria estar nos braços de sua mãe, a planear a
viagem para Edimburgo.
A
entrada chamava-a como uma boca aberta à espera de a engolir. Era só escuridão.
Não havia nada a temer. Chamando a si cada pedacinho de coragem, deu um passo
em frente. O seu coração não tardou a retumbar com uma batida lenta e horrível.
Correr faria tudo passar mais depressa, mas ela não conseguia incitar as pernas
a mais do que um avanço trôpego e hesitante. Tateando a parede, combateu as
velhas memórias que a incitavam à histeria. Terror. Frio. Solidão desoladora.
Garras invisíveis que se aproximavam para a agarrar. Mas, depois, graças a
Deus, outra memória. Uma luz acolhedora e um rosto bondoso e uma mão que se
oferecia a ela através da escuridão. Anda comigo, criança. Ficarás em segurança
e nunca mais sentirás um medo assim. Ela focou-se na imagem daquela mão, e na
atenção e segurança e amor que lhe oferecia. Caminhou um bocadinho mais rápido,
imersa nela.
De
repente, as mãos espectrais agarraram nela. Ela gritou e o som ressoou nas
paredes de pedra, encerrando-a no seu eco. Desatou aos socos e pontapés até uns
braços fortes a prenderam contra um corpo alto e uma respiração cálida se
espalhar pelo seu rosto. Atordoada, emergiu do pesadelo e deu por si rodeada
pela força e pelo cheiro de Ian de Guilford. – Calma, quieta. Sossegou-a como se sossega um
cavalo. Num momento de desorientação, ela quase se deixou cair contra ele,
grata e aliviada. Depois as memórias desvaneceram-se completamente e ela
compreendeu o significado da sua presença. Voltou a debater-se. Não me façais
ter de vos magoar, Melissa. disse ele, arrastando-a de volta à entrada.
Segurando nela, enfiou a cabeça na abertura e assobiou. Seu canalha. Seu filho
duma égua, sibilou ela. Como sabíeis?
A
povoação chegou a acordo comigo há muito tempo. E vós passais por mulher de um
artesão tão bem quanto passais por cortesã. Os braços dele ainda a envolviam
por trás. Não vos sintais mal nem vos culpeis. É melhor assim para os que estão
lá dentro. Ela duvidava seriamente disso. Invadiu-a uma culpa horrível. Em vez
de os salvar, tinha apressado o seu sofrimento. Desejou ter ali o punhal. Desta
vez não haveria hesitação. Um punhado de sombras impedia que a luz débil atravessasse
a entrada. Raios me partam. Tínheis razão, disse uma voz mais velha.
Ian
encostou-a à parede de pedra, mantendo uma mão firme nos seus ombros. Acabou.
Não façais nenhuma estupidez, avisou. Ela lançou um olhar furioso à sombra
indefinida da sua cabeça. Raios partam o homem. Raios o partam. Cuidadosamente,
deliberadamente, esticou-se até não poder mais, inclinou a cabeça para trás, e
cuspiu. Os outros devem ter ouvido, pois abateu-se sobre o pequeno grupo uma imobilidade
silenciosa. Ian agarrou-lhe a cara com força. Tende juízo, Melissa, ou
tratar-vos-ei como a rameira que fingistes ser. Afastou-se. Montai-lhe guarda
com a vossa espada, John. Não a deixeis sair daqui até eu voltar para a buscar.
Estais a dizer que eu tenho de ficar aqui?, queixou-se uma voz jovem de
escudeiro. Fazei o que vos digo. E, John, lembrai-vos do que vos disse há
pouco. Ela é minha. Não andaríeis no meu cavalo sem a minha autorização, por
isso também não vos ponhais com liberdades com ela». In Madeline Hunter, Mil Noites de
Paixão, 2002, Edições ASA, 2012, ISBN 978-989-231-672-7.
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JDACT, Madeline Hunter, Literatura, Idade Média,