«Um odor encharcado de mofo enchia o ar pesado, quente e húmido das catacumbas. Depois de ajeitar o capacete de operário que lhe protegia a cabeça, Tomás Noronha fez sinal à acompanhante para o seguir e virou a lanterna para a frente. O foco de luz, que até ali dançava nervosamente pelas paredes desgastadas pelo tempo, perdeu-se de repente num espaço mais vasto que sem aviso se abriu diante deles. O historiador estacou e examinou a nova divisória; dir-se-ia que haviam chegado a uma sala ou até a um pátio interior repleto de entulho. Brrr, que sítio sinistro!, gemeu Maria Flor atrás dele, quebrando o silêncio. Onde estamos?
Por baixo das Grotte Vecchie,
identificou Tomás. As Grutas Velhas. Mais exactamente no muro sul. À medida que
avançamos vamos recuando no tempo. Aqui é o Século III, ali ao fundo o Século
II, depois o Século I. As vozes de ambos reverberavam no espaço fechado, amplificadas
pela rede de clivi, ou pequenas
ruas, e de túneis que furavam entre as paredes e janelas dos mausoléus que os
cercavam. Nos tectos das catacumbas acumulavam-se gotas invisíveis que iam
pingando a um ritmo cadenciado, soltando aqui e acolá pliques e ploques molhados
que também ecoavam pelas ruínas; parecia que espectros assombravam as múltiplas
criptas esquecidas sob o pó dos Séculos. Ainda falta muito?
Depois de atravessarem mais um clivus, o foco de luz
da lanterna detectou uma estrutura inserida nos escombros diante da grande
parede com reboco vermelho que se estendia do outro lado do espaço. Chegamos,
disse ele. Entramos no Século I. Maria Flor varreu as ruínas com o olhar. O que
é isto? O Campo P.
A luz percorreu uma coluna de
oitenta centímetros de altura de mármore e depois uma parede perpendicular e
terminou na peça de mármore que a coluna sustentava com dois nichos
sobrepostos; assemelhava-se a um alpendre de pedra, mas, tratando-se de uma
necrópole, só podia ser um mausoléu em forma de edícula. Uma das colunas evidentemente
desaparecera, mas a outra sobrevivera.
Maria Flor apontou para a
estrutura. É isto o Campo P? Não, indicou Tomás, ainda a analisar o mausoléu embutido
na pedra. O Campo P é todo este espaço apertado onde agora penetramos e que está
fechado ao público. A estrutura à nossa frente é aparentemente o troféu de
Gaius. Quem? Gaius. O que é isso? O historiador avançou, atravessando o Campo P
até chegar junto da estrutura; todo o espaço era rectangular, com uns sete
metros de um lado ao outro, e estava coberto de pedras e túmulos rasos,
evidentemente de pessoas mais modestas do que aquelas cujos restos repousavam
nos mausoléus para a eternidade.
É o achado em torno do qual tenho
andado às voltas desde que cheguei aqui a Roma. Julguei que estavas a trabalhar
no túmulo de São Pedro... Tirando o saco dos utensílios arqueológicos que
trazia às costas, Tomás depositou-o com cuidado diante da coluna, aos pés da
pequena parede aí erguida. O troféu de Gaius é o túmulo de Pedro,
querida. O Campo P é a designação arqueológica de Campo de Pedro.
Pouco convencida, ela analisou a
coluna e esboçou uma expressão carregada de desconfiança. Isto é um túmulo? Sim,
foi nesta zona que Pedro foi crucificado e os seus restos mortais sepultados. Estamos
no túmulo de Shimon, o primeiro dos apóstolos, o pescador a quem Jesus disse
que seria a pedra sobre a qual ergueria a sua Igreja. A palavra pedra está na
origem do nome pelo qual Shimon, ou Simão, ficou eternamente conhecido. Pedro.
Simão, a pedra, ou Pedro, o primeiro papa.
Como sabes isso? Como sei o quê?,
devolveu ele em tom zombeteiro. Que Pedro era o pescador Simão que acompanhava
Jesus e que mais tarde se tornou o primeiro papa? Não, palerma! Que é este o sítio
onde São Pedro foi crucificado e sepultado. Como sabes isso?
Todas as fontes antigas, como
Tertuliano em 195 e Eusébio em 325, atestam que Pedro era o bispo de Roma e foi
crucificado durante as perseguições lançadas pelo imperador Nero contra os
cristãos no ano 64. Um texto apócrifo intitulado Actos de Pedro
esclarece que a crucificação foi feita de cabeça para baixo e pernas para o ar,
versão que parece ser confirmada indirectamente no Evangelho de João e numa
outra fonte citada por Eusébio. Maria Flor apontou com insistência para a
estrutura enquadrada pela coluna». In José Rodrigues dos Santos, Vaticanum,
2016, Gradiva, ISBN 978-989-616-733-2.
Cortesia de Gradiva/JDACT
JDACT, José Rodrigues dos Santos, Vaticano, Literatura, Conhecimento,