«Pegou no punhal. Olhou com pena para o belo homem ali deitado como uma vítima sacrificial sob o efeito de drogas. Pareceu-lhe indefeso, assim de repente, a dormir como uma criança e, subitamente, ela imaginou-o como tal, fresco e inocente. Sentiu um aperto no coração, que se revoltava contra o rumo que ela havia traçado para si própria. Ergueu o punhal, agarrando-o com ambas as mãos, a ponta letal apontada ao coração dele. Os braços dela tremiam, o corpo dela tremia, a própria lâmina oscilava no ar. Ela tentou novamente encontrar coragem no medo que sentia pelos amigos. Quando isto não resultou, virou-se para o medo que sentia por si própria. Os olhares de suspeita e as acusações. A carta do bispo. Os livros e plantas e poções. Deixara de ver o punhal, mas este surgiu, de repente, à sua frente, muito real, muito afiado. Ela olhou para os nós dos dedos cerrados à volta do cabo, depois para a ponta, e depois para o peito sólido. Por fim, olhou de relance para o belo rosto.
Ele
devolveu-lhe o olhar. Olhos negros reluziam perigosos por baixo de copiosas
pestanas. Sentiu-se tomada de pânico. Sabendo que agora seria matar ou ser
morta, ergueu-se nos joelhos e fez o punhal seguir o seu curso. Uns braços
fortes ergueram-se de rompante e uns dedos de ferro agarraram-lhe os pulsos.
Ele atirou-a para o lado e ela caiu. Na luta que se seguiu, a lâmina tocou-lhe
e um fio vermelho escorreu pelo braço dele. Ela deu por si deitada de costas e
imobilizada. O rosto que via à sua frente estava endurecido pela fúria.
Achastes mesmo que eu seria um Holofernes para a vossa Judite?, rosnou ele. Era
esse o plano, não era? Como nos evangelhos bíblicos. Matais o general e o
exército sem líder dispersa em confusão.
Apócrifos,
corrigiu ela absurdamente, com uma voz que parecia vir de muito longe. Não é da
Bíblia convencional. É dos evangelhos apócrifos. Que me importa se Deus deu a
história a Moisés em pessoa, sua cabra. Ele agarrou-lhe no cabelo e pôs-se em
pé, obrigando-a a colocar-se de joelhos. Arrastou-a até ao mastro central e
atou-a com os braços esticados acima da cabeça. Foi até às peles. Ela tinha a
certeza de que ele ia buscar o punhal para lhe cortar o pescoço. O seu coração
batia-lhe no peito com uma pulsação de chumbo. Ele regressou com a garrafa de
vidro e encostou-a aos lábios dela. Bebei, ordenou.
Ela
gemeu e mexeu-se. Ian olhou-a do banco onde estava sentado a comer uma das
empadas. Ela estava deitada na enxerga, de braços e pernas afastados e
amarrados aos cantos. Ele tinha ponderado tirar-lhe a roupa mas acabara por
decidir que poderia ser de mais. Ele queria-a assustada e vulnerável, não
paralisada de terror. A luta deles rasgara-lhe o vestido, quase expondo um
pequeno e mimoso seio. A saia subira-lhe pelas pernas bem torneadas. Ela tinha
um corpo muito bonito, mesmo que algo magro de mais. Pequeno e curvilíneo e
compacto e bem-feito como o de Elizabeth era, só que mais jovem.
Quando
a vira pela primeira vez, em pé à luz ténue, formidável e determinada, com
aquele cabelo claro e liso a dar-lhe pelas ancas, pensara por um instante que
ela era Elizabeth. Mas o rosto, ainda que bastante belo, nada tinha da
perfeição precisa de Elizabeth, e era mais caloroso e expressivo. E o cabelo
não era branco como o de Elizabeth, mas de um louro-claro raiado de madeixas
prateadas, e a sua pele possuía um agradável brilho rosado. Elizabeth fora
branca como a neve. Esta mulher parecia o primeiro sol da madrugada. Vinte e tais, foi o seu palpite. Adorável e
corajosa. Pena ter de a destruir.
O
seu escudeiro, John, transpôs a entrada da tenda, trazendo consigo um prato de
guisado. O jovem tinha tomado o seu tempo para servir a ceia, trazendo uma
coisa de cada vez, o que lhe proporcionava uma desculpa para olhar
cobiçosamente para a mulher. Os seus olhos voluptuosos examinaram as pernas
desnudadas. Era melhor clarificar as coisas agora. – Mantém as calças bem
apertadas, rapaz. Ela não é para ti. John corou e pousou o guisado. Ian recebeu
a pasta sensaborona com uma careta. Felizmente, tinha enchido a barriga com as
deliciosas empadas de carne de Melissa. Pegando na última, atirou-a ao escudeiro
quando ele saiu. Uma consolação.
O
prazer que se tira de toda a mulher é muito parecido. O mesmo não se pode dizer
da comida. Ela voltou a mexer-se. As suas pálpebras ergueram-se suavemente.
Ficou alerta à medida que compreendia a posição em que estava. Deu puxões às
cordas que a amarravam, e o movimento fê-la gemer novamente. Então, que tal?,
perguntou ele. Nunca ouvi falar de uma poção para dormir que depois não nos
desfizesse a cabeça.
O
olhar encoberto dela deslizou para o sítio onde ele estava sentado. Por um
momento, antes de se recompor, mostrou uma centelha de pânico. Óptimo. Sorte a
vossa que não era veneno, acrescentou ele. Eu não tinha uma receita de veneno. Ele
resistiu à vontade de rir. Quanta vivacidade. – Que pena. Ela conseguiu
encolher um pouco os ombros. Já que é óbvio que nunca bebestes uma gota, não
teria feito diferença nenhuma. Ela voltou a passar os olhos pelo seu corpo
vulnerável. O que ides fazer? Tentou parecer corajosa e imperturbável. Ele
sentiu alguma pena dela. Tenho estado a pensar nisso durante estas últimas
horas. Estava a postos para vos enforcar quando vós acordastes. Enforcar-me! Sim.
Por assassínio. Mas eu não… Tentastes. Não foi bem assim. Perdi a coragem. Tenho
um corte no braço que diz que sim. Só porque me atacastes. Se tivésseis ficado
a dormir como era devido…
Agora
estaria morto. Não vos ponhais agora com lamechices a fazer-vos de inocente,
Melissa. O vosso plano tinha arrojo e coragem, e eu respeito isso. Mas
falhastes, o que faz com que a vossa vida me pertença e eu possa dispor dela.
Pensei num enforcamento, mas o meu escudeiro convenceu-me que seria um
desperdício. Portanto, engendrei um plano para a vossa redenção. Ele
aproximou-se e sentou-se no catre, ao lado dela. Como fizestes notar, este
cerco tem sido longo e abrasador. Encontram-se aqui muitos homens entediados, e
as meretrizes do acampamento… bem, elas não são a mesma coisa do que ter uma
cortesã. Ela arregalou os olhos. Estais a dizer que ides dar-me ao vosso
exército? Que esperais que eu…» In Madeline Hunter, Mil Noites de Paixão,
2002, Edições ASA, 2012, ISBN 978-989-231-672-7.
Cortesia de EASA/JDACT
JDACT, Madeline Hunter, Literatura, Idade Média,