quarta-feira, 1 de novembro de 2023

O Homem de Constantinopla. José Rodrigues Santos. «Desde o colapso financeiro que as contas do império ficaram a descoberto e o sultão precisa urgentemente de dinheiro. Ora, dinheiro já ele tem, observou a mulher com sarcasmo. E muito! Estás enganada»

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O Homem de Constantinopla

«Veron soergueu a sobrancelha, subitamente desconfiada; sabia tão bem como o marido que ninguém no palácio, a começar pelo seu amigo Salim Bey, oferecia nada desinteressadamente. Quanto quer ele? Cinco mil libras de ouro à cabeça e quinze por cento dos lucros. Fez-se silêncio no salão. Sentado no seu tapete de pele de cordeiro, Kaloust esforçava-se por permanecer invisível enquanto acompanhava a conversa; fascinava-o ouvir falar de negocies, mas tentava a todo o custo não se tornar notado, não o fossem mandar embora como aos criados.

Cinco mil libras de ouro é muito dinheiro, observou ela pausadamente. Onde as iremos arranjar? Vendemos as nossas propriedades em Kadi Keui, sugeriu Vahan. Temos mil libras de ouro, não temos? Essas propriedades hão-de render outras duas mil. Quanto às restantes duas mil, pedila-emos emprestadas aos bancos em Constantinopla. Encolheu os ombros, num gesto de impotência. Ficaremos depenados, claro, mas valerá a pena. O olhar de Veron desviou-se para a chama que ainda ardia na ponta do fio de algodão.

Não sei, hesitou. É muito dinheiro ... Mas não achas que é um bom negócio? A mulher estreitou as pálpebras enquanto ponderava o assunto. Aquela decisão era importante e antes de pronunciar o seu veredicto precisava de saber mais. Em que consiste o negócio exactamente?, quis ela saber, fazendo um gesto na direcção da lâmpada. Ficamos com o exclusivo da importação dessa geringonça? É isso? O marido soltou uma gargalhada Não das lâmpadas, corrigiu. Do querosene. Salim Bey oferece-nos o exclusivo da venda de querosene ao sultão.

Aliás, as cinco mil libras de ouro destinam-se às finanças pessoais do sultão. Salim Bey contenta-se com os quinze por cento do negócio. Veron manteve a expressão inquisitiva; ainda não tinha informação suficiente para tomar uma decisão segura. Mas afinal o que é isso do querosene?, perguntou. Onde se vai buscar essa coisa? O querosene é um derivado de um óleo que nasce nas pedras. Daí o seu nome, óleo das pedras. Pedra em grego é petra. Petra óleo. Agora até há uma expressão mais moderna, petróleo. Parece que foram descobertas grandes quantidades desse óleo na América.

E tu vais comprar o óleo à América? Claro! Se o negócio avançar, vou tornar-me o representante oficial do maior dos exportadores americanos, a Stand Oil, que ... Standard Oil, corrigiu o sogro. Pois, isso. Com o dedo debaixo da pálpebra direita acrescentou: E já ando de olho na Rússia também. Encontraram óleo das pedras bem perto daqui, em Baku. Indicou a chama tremeluzente. Isto é o futuro, mulher! Quando os candeeiros estiverem à venda, as pessoas vão deixar de usar velas de cera. Toda a gente vai querer estes candeeiros a óleo. No momento em que isso acontecer..., ficaremos ricos! Vacilou, tentando ler o pensamento de Veron pela expressão do seu olhar. Ou achas que não?

Os olhos da mulher não descolavam do candeeiro. De facto, como resistir à sedução de uma chama sem cheiro nem fumo? Cinco mil libras de ouro era uma verdadeira fortuna, estava realmente nos limites das suas capacidades financeiras ou até para lá deles. Os riscos pareciam-lhe enormes. Não lhes restaria um tostão e ficariam de tal modo endividados que poderiam ser arrastados para a bancarrota, contra a qual a sua prudência de mulher a alertava. Mas até um idiota perceberia as potencialidades comerciais encerradas naquela maravilhosa chama azulada.

Porquê nós? Porque nos oferecem o negócio a nós? Porque Salim Bey confia em mim. Veron inclinou a cabeça com uma expressão céptica muito sua, como se pedisse que a poupassem a conversa fiada. Vá, agora a sério. Porque estamos no sítio certo, corrigiu Vahan. Basta aliás olhar para o mapa. Temos negócios em Constantinopla, onde os Americanos podem descarregar o seu produto. E estamos em Trebizonda, que se encontra a dois passos de Batum e a meio caminho do óleo das pedras de Baku. Além disso, vamos dar-lhes a ganhar muito dinheiro. Desde o colapso financeiro que as contas do império ficaram a descoberto e o sultão precisa urgentemente de dinheiro. Ora, dinheiro já ele tem, observou a mulher com sarcasmo. E muito! Estás enganada». In José Rodrigues Santos, O Homem de Constantinopla, Edições Gradiva, 2013, ISBN 978-989-616-549-9.

Cortesia de EGradiva/JDACT

JDACT, José Rodrigues dos Santos, Literatura, A Arte,