O Homem de Constantinopla
«Veron soergueu a
sobrancelha, subitamente desconfiada; sabia tão bem como o marido que ninguém
no palácio, a começar pelo seu amigo Salim Bey, oferecia nada
desinteressadamente. Quanto quer ele? Cinco mil libras de ouro à cabeça e
quinze por cento dos lucros. Fez-se silêncio no salão. Sentado no seu tapete de
pele de cordeiro, Kaloust esforçava-se por permanecer invisível enquanto
acompanhava a conversa; fascinava-o ouvir falar de negocies, mas tentava a todo
o custo não se tornar notado, não o fossem mandar embora como aos criados.
Cinco mil libras de ouro é muito dinheiro, observou ela pausadamente. Onde
as iremos arranjar? Vendemos as nossas propriedades em Kadi Keui, sugeriu
Vahan. Temos mil libras de ouro, não temos? Essas propriedades hão-de render
outras duas mil. Quanto às restantes duas mil, pedila-emos emprestadas aos
bancos em Constantinopla. Encolheu os ombros, num gesto de impotência.
Ficaremos depenados, claro, mas valerá a pena. O olhar de Veron desviou-se para
a chama que ainda ardia na ponta do fio de algodão.
Não sei, hesitou. É muito dinheiro ... Mas não achas que é um bom negócio? A
mulher estreitou as pálpebras enquanto ponderava o assunto. Aquela decisão era
importante e antes de pronunciar o seu veredicto precisava de saber mais. Em
que consiste o negócio exactamente?, quis ela saber, fazendo um gesto na
direcção da lâmpada. Ficamos com o exclusivo da importação dessa geringonça? É
isso? O marido soltou uma gargalhada Não das lâmpadas, corrigiu. Do querosene.
Salim Bey oferece-nos o exclusivo da venda de querosene ao sultão.
Aliás, as cinco mil libras de ouro destinam-se às finanças pessoais do
sultão. Salim Bey contenta-se com os quinze por cento do negócio. Veron manteve
a expressão inquisitiva; ainda não tinha informação suficiente para tomar uma
decisão segura. Mas afinal o que é isso do querosene?, perguntou. Onde se vai
buscar essa coisa? O querosene é um derivado de um óleo que nasce nas pedras.
Daí o seu nome, óleo das pedras. Pedra em grego é petra. Petra óleo.
Agora até há uma expressão mais moderna, petróleo. Parece que foram descobertas
grandes quantidades desse óleo na América.
E tu vais comprar o óleo à América? Claro! Se o negócio avançar, vou
tornar-me o representante oficial do maior dos exportadores americanos, a Stand
Oil, que ... Standard Oil, corrigiu o sogro. Pois, isso. Com o dedo debaixo da
pálpebra direita acrescentou: E já ando de olho na Rússia também. Encontraram
óleo das pedras bem perto daqui, em Baku. Indicou a chama tremeluzente. Isto é
o futuro, mulher! Quando os candeeiros estiverem à venda, as pessoas vão deixar
de usar velas de cera. Toda a gente vai querer estes candeeiros a óleo. No
momento em que isso acontecer..., ficaremos ricos! Vacilou, tentando ler o
pensamento de Veron pela expressão do seu olhar. Ou achas que não?
Os olhos da mulher não descolavam do candeeiro. De facto, como resistir à
sedução de uma chama sem cheiro nem fumo? Cinco mil libras de ouro era uma
verdadeira fortuna, estava realmente nos limites das suas capacidades
financeiras ou até para lá deles. Os riscos pareciam-lhe enormes. Não lhes
restaria um tostão e ficariam de tal modo endividados que poderiam ser
arrastados para a bancarrota, contra a qual a sua prudência de mulher a
alertava. Mas até um idiota perceberia as potencialidades comerciais encerradas
naquela maravilhosa chama azulada.
Porquê nós? Porque nos oferecem o negócio
a nós? Porque Salim Bey confia em mim. Veron inclinou a cabeça com uma
expressão céptica muito sua, como se pedisse que a poupassem a conversa fiada. Vá,
agora a sério. Porque estamos no sítio certo, corrigiu Vahan. Basta aliás olhar
para o mapa. Temos negócios em Constantinopla, onde os Americanos podem
descarregar o seu produto. E estamos em Trebizonda, que se encontra a dois
passos de Batum e a meio caminho do óleo das pedras de Baku. Além disso, vamos
dar-lhes a ganhar muito dinheiro. Desde o colapso financeiro que as contas do
império ficaram a descoberto e o sultão precisa urgentemente de dinheiro. Ora,
dinheiro já ele tem, observou a mulher com sarcasmo. E muito! Estás enganada». In José
Rodrigues Santos, O Homem de Constantinopla, Edições Gradiva, 2013, ISBN
978-989-616-549-9.
Cortesia de EGradiva/JDACT
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