Três Irmãs na Corte de Leão (1086-1094
S.
Pedro de Montes, Bierzo, Abril de 1086
«De cabeça baixa, os irmãos
entoavam baixo as preces, enquanto acendiam as lareiras, cortavam a hortaliça
na cozinha, punham as panelas ao lume e abriam as mesas no refeitório, onde
hoje o imperador e a família se sentariam a cear. Teresa estava demasiado
distraída para prestar atenção a orações.
Quando entrou na sala reservada à
família Moniz, viu a mãe e as suas damas, sentadas num banco corrido próximo da
lareira, as mãos em copa pousadas sobre o colo, os olhos no imperador, como que
hipnotizadas. Afonso VI era alto, muito alto, o cabelo castanho ondulado e bem
tratado chegava-lhe aos ombros, a barba era longa, até ao peito. Teresa
achava-o igual a Moisés com as tábuas dos mandamentos na mão, tal e qual a
imagem que vira num dos grandes livros do mosteiro. Era tão forte, tão bonito,
a pele tisnada do sol, apesar de a Primavera ainda agora ter começado.
O imperador, ao reparar nas
filhas, abriu os braços para as receber. Teresa procurou conter-se, mas não
resistiu, correu para o pai, que a lançou ao ar, soltando uma gargalhada que se
confundiu com a dele. Meu cabritinho do monte, disse-lhe o rei, beijando-a e
pousando-a no chão, para, de seguida, beijar suavemente Elvira, que, direita e
bem-comportada, esperava a sua vez. Dá-me uma espada nova, maior e de lâmina
mais afiada?, pediu Teresa, fingindo não perceber o sobrolho franzido da mãe. Afonso
soltou uma nova gargalhada: O que é que fizeste à outra? Aprendi a lutar com
ela, e já corto as ervas altas de uma vez só, mas não é a mesma coisa do que
degolar um mouro, nem matar o inimigo a galope num cavalo. Um dia vou comandar
o meu exército, como o imperador comanda o seu, disse a princesa, de um fôlego só.
Os homens de Afonso ergueram as
canecas de vinho em saudação, e o imperador sentou a filha sobre o joelho: Só espero
que a tua luta não seja contrâ mim, Teresa. A filha olhou-o, como que a medir-lhe
a altura e a força, e retorquiu convicta: Não, pelo menos para já não, porque perdia...
Afonso fingiu puxar-lhe uma orelha: Se fosse a ti não me atrevia! Mas fico contente
que te juntes ao meu exército. Com a notícia de que os almorávidas vão desembarcar
a sul, comandados pelo terrível Yusuf ben Tasufin, bem precisamos de que cresças
depressa e aprendas a manejar essa espada. Teresa procurou repetir o nome do chefe
africano, atrapalhando-se a pronunciá-lo. Ouvindo rir, virou a cabeça zangada paru
descobrir quem se atrevia â troçar dela, dando de caras com Alberto, que, aos catorze
anos, era o mais novo dos escudeiros do rei.
Alberto corou e fez uma vénia
delicada e Teresa pensou, por minutos, se havia ou não de o crucificar. Saltou
do colo do pai e, apontando para o rapaz declarou: Da última vez que cá estiveram,
o Alberto ensinou-me a usar a espada e a manejar o arco. Pai, pode deixá-lo ficar
no Bierzo como meu professor? A vingança servia-se fria. Afonso reparou, divertido,
que o pobre escudeiro se engasgava na indignação. Por muito princesa que fosse,
quem se imaginava Teresa para dispor assim da sua vida de soldado? Mas antes
que o rei pudesse responder, Ximena deu dois passos em direcção à filha mais
nova e, pondo-lhe as mãos nos ombros, apertou-os com força, espetando as unhas compridas
na sua carne. Teresa sabia bem o que aquilo queria dizer e, procurando esconder
a dor, despediu-se do rei, num tom subitamente sóbrio: Parece-me que hoje vou para
a cama mais cedo, disse e, beijando a mão do imperador, deixou que a ama a levasse
dali para fora.
Os ventos vindos dos cumes nevados
infiltravam-se por todas as frinchas, gelando a gente da casa até aos ossos. A noite
no Bierzo era assim. Ximena puxou sobre os ombros a capa de urso e, chegando-se
mais perto da lareira, onde enormes troncos ardiam, abriu as palmas das mãos para
o fogo. Nas labaredas pareceu-lhe ver o seu passado, ela e Afonso, tão felizes e
despreocupados, Afonso a oferecer-lhe o anel que até hoje nunca tinha tirado do
dedo, Afonso com Teresa nos braços, as laranjeiras em flor». In
Isabel Stilwell, Dona Teresa, Livros Horizonte, 2021, ISBN 978-972-242-003-7
Cortesia de LHorizonte/JDACT
JDACT, Isabel Stilwell, História, Conhecimento, Literatura, O Saber,