sábado, 18 de novembro de 2023

O Último Catão. Matilde Asensi.«Usava óculos antiquados, de plástico terroso e grandes vidros de forma quadrangular, vestia sotaina negra com filetes e botões púrpura, faixa matizada e meias da mesma cor. Uma discreta cruz peitoral de ouro se destacava sobre seu peito»

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«Desgraçadamente, estávamos nas portas de tão espectacular acontecimento e a cidade era um caldeirão de manobras e maquinações por parte das diferentes facções interessadas em colocar seu candidato no Trono de Pedro. O certo é que, no Vaticano, já há muito tempo que se vivia com uma grande sensação de fim de pontificado e ainda que a mim, como filha da Igreja e como religiosa, tal situação não me afectava absolutamente. Já como investigadora com vários projectos pendentes de aprovação e financiamento, me prejudicava muito directamente. Durante o pontificado de João Paulo II, de marcada tendência conservadora, fora impossível levar a cabo determinado tipo de trabalhos de investigação. Em meu foro interno, ansiava que o próximo Santo Padre fosse um homem mais aberto de ideias e menos preocupado em se entrincheirar na versão oficial da história da Igreja, havia tanto material classificado debaixo das epígrafes de Reservado e Confidencial!

Com certeza, não tinha muitas esperanças de que se produzisse uma renovação significativa, já que o poder acumulado pelos cardeais nomeados pelo próprio João Paulo II, durante mais de vinte anos, definia como impossível a eleição no Conclave de um Papa da ala progressista. Salvo se o Espírito Santo em pessoa estivesse decidido a uma mudança e exercesse sua poderosa influência em uma nomeação tão pouco espiritual, ia ser realmente difícil que não saísse eleito um novo Pontífice do grupo conservador. Nesse instante, um sacerdote vestido com sotaina negra se aproximou do Reverendo Padre Ramondino, disse algo ao seu ouvido, e este me fez um sinal, levantando as sobrancelhas, para que me preparasse: estavam nos esperando e devíamos entrar. As esquisitas portas se abriram em frente a nós silenciosamente e eu esperei que Prefeito entrasse em primeiro lugar, como manda o protocolo. Uma sala três vezes maior que a sala de espera da qual viemos, completamente atulhada com espelhos, molduras douradas e pinturas, que identifiquei serem de Rafael, decorava o menor escritório que vira em minha vida: ao fundo, quase invisível para meus olhos, uma mesa clássica, colocada sobre um tapete e seguida por uma cadeira de espaldar alto, constituía todo o mobiliário. A um lado da sala, debaixo das esbeltas janelas que deixavam passar a luz do exterior, um grupo de eclesiásticos conversava animadamente, ocupando uns pequenos banquinhos que ficavam ocultos debaixo de suas sotainas. De pé atrás de um daqueles prelados, um estranho e taciturno laico permanecia à margem da conversa, exibindo uma atitude tão obviamente marcial que não tenho nenhuma dúvida de que se tratasse de um militar ou um policial.

Era terrivelmente alto, mais de um e metro noventa de altura, corpulento e forte como se levantasse pesos todos os dias e mastigasse vidros nas refeições. Usava o cabelo ruivo totalmente raspado. Ao nos ver chegar, um dos cardeais, que reconheci imediatamente como o Secretário de Estado, Ângelo Sodano, se pôs de pé e veio a nosso encontro. Era um homem de estatura mediana e aparentava uns setenta e tantos anos, com uma ampla testa, produto de uma discreta calvície, e com o cabelo branco engomado debaixo do solidéu de seda púrpura. Usava óculos antiquados, de plástico terroso e grandes vidros de forma quadrangular, vestia sotaina negra com filetes e botões púrpura, faixa matizada e meias da mesma cor. Uma discreta cruz peitoral de ouro se destacava sobre seu peito. Sua Eminência tinha um grande sorriso amistoso quando se aproximou do Prefeito, para trocarem os beijos de saudação. Guglielmo! Exclamou.

Que alegria voltar a vê-lo! Eminência! A satisfação mútua pelo reencontro era evidente. Assim, o Prefeito não fantasiara ao falar sobre sua velha amizade com o mandatário mais importante do Vaticano, depois do Papa, claro. Cada vez me encontrava mais perplexa e desorientada, como se tudo aquilo fosse um sonho e não uma realidade tangível. O que acontecera para que eu estivesse ali? O restante dos presentes, que também observavam a cena com atenção e curiosidade, eram o Cardeal Vicário de Roma e presidente da Conferência Episcopal Italiana, Sua Eminência Carlo Colli, um homem tranquilo de aparência afável; o Arcebispo Secretário da Segunda Seção, Monsenhor Françoise Tournier, que reconheci por seu solidéu violeta, e não púrpura, exclusivo dos Cardeais, e o silencioso combatente ruivo, que franzia as sobrancelhas transparentes como se estivesse profundamente desgostoso por aquela situação.

De repente, o Prefeito se voltou para mim e, me empurrando pelo ombro, me adiantou até me colocar a seu lado, em frente ao Secretário de Estado. Esta é a doutora Otávia Salina, Eminência, disse como apresentação; os olhos de Sodano me examinaram de cima a baixo em questão de segundos. Menos mal que nesse dia me havia vestido decentemente, com uma bonita saia cinza e um conjunto de jersey com casaco salmão. Uns trinta e oito ou trinta e nove anos bem vividos, rosto agradável, cabelo curto e negro, olhos negros e mediana estatura. Eminência... Murmurei ao mesmo tempo em que fiz uma genuflexão e, inclinando a cabeça em sinal de respeito, beijei o anel que o Secretário de Estado colocara ante meus lábios. Você é religiosa, doutora? Perguntou após a saudação. Tinha um ligeiro sotaque do Piamonte. A irmã Otávia, Eminência, se apressou a esclarecer o Prefeito, É membro da Ordem da Venturosa Virgem Maria. E por que veio laica? Perguntou o Arcebispo Secretário da Segunda Seção, Monsenhor Françoise Tournier, desde sua cadeira. Acaso sua ordem não usa hábito, irmã? O tom era profundamente ofensivo, mas não me ia deixar intimidar. A estas alturas de minha vida na cidade, a mesma situação já acontecera uma infinidade de vezes e estava curtida em mais de mil batalhas do gênero. Olhei directamente nos seus olhos para responder: Não, monsenhor. Minha ordem abandonou os hábitos após o Concílio Vaticano II. Ah, o Concílio...!» In In Matilde Asensi, O Último Catão, 2005, Editora Dom Quixote, ISBN 978-972-202-904-9.

Cortesia de EDQuixote/JDACT

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