«Sendo assim, que o Senhor vos acompanhe. Reyna atravessou a entrada e ficou em pé entre os arbustos. Cinquenta metros mais à frente estavam os acampamentos que circundavam a torre. Não era um exército numeroso, mas era suficientemente grande para assegurar que ninguém saía nem provisões entravam. Não tinha havido tentativas de assalto, ninguém a escalar muralhas, nem máquinas de guerra a arremessar fogo e pedras. Tampouco houvera negociações. Apenas dois meses de um inabalável cerco.
Homens
circulavam pelo acampamento, os seus movimentos indolentes com o calor do
verão. Não envergavam muita roupa e o sol bronzeara os seus corpos. Um punhado
havia adotado os kilts, mais frescos, dos escoceses. Mas estes homens não eram
escoceses.
Ingleses,
pensou ela com repulsa, e a simples ideia deu-lhe renovada determinação. Os
ingleses haviam sido os monstros da sua infância e os inimigos da sua juventude.
O seu rei escocês podia ter aceitado a derrota pelo rei Eduardo de Inglaterra
há dez anos, mas não havia escocês algum, especialmente das fronteiras de
Cúmbria e Northumberland, que se submetesse prontamente à autoridade que os
ingleses reclamavam.
Ela
sabia tudo sobre os soldados ingleses e sobre o que aconteceria se os sapadores
deles conseguissem atravessar as muralhas. Há gerações que se repetiam
descrições das atrocidades dos ingleses. Ela obrigou-se a imaginar pessoas que
conhecia a serem esquartejadas e torturadas, granjeando força dessas imagens
horríveis. Não estava na sua natureza fazer o que planeara fazer agora, mas não
via outra alternativa. Esperava que Deus acorresse em seu auxílio, e que depois
a perdoasse.
Saiu
disparada do meio dos arbustos e caminhou na diagonal até aparentar ter vindo
de um dos caminhos a norte. Os homens examinaram-na, avaliando o significado do
seu cabelo solto e do vestido de seda. Ela avançou a passos firmes,
dirigindo-se ao acampamento ocidental e à tenda grande que se encontrava no seu
centro. Quando a avistou, abrandou. Uma vez lá dentro, não haveria retorno.
Um
assobio lascivo captou a sua atenção. Dois cavaleiros trocaram um sorrisinho
irónico e começaram a caminhar em direcção a ela, fazendo sons obscenos com a
boca, zombando dela. Reyna sentiu um arrepio na pele e fez a correr os últimos
metros até à tenda grande com galhardetes verdes e brancos.
Um
escudeiro estava à entrada, a limpar armas. Ergueu os olhos, perplexo, quando
ela avançou decidida na sua direcção, passou a correr por ele, e se enfiou na
tenda. Ela rezou para que o homem que procurava estivesse lá dentro e que os
outros não a seguissem.
De
qualquer forma, isso não queria dizer nada, pois ele podia simplesmente
encolher os ombros e deixá-los levá-la. A lona branca criava uma luz difusa,
suave, e ela precisou de algum tempo para ajustar a visão. Passou os olhos pela
pouca mobília da tenda; um catre, uma mesa e um baú. Uma armadura polida
brilhava no chão a alguns passos dela. Não se ouvia um único som naquele
espaço. Foi então que uma sombra se moveu. Um homem ergueu-se do banco onde
estivera sentado com as costas apoiadas no mastro central da tenda. O que
fazeis aqui?, perguntou ele num tom ríspido. Ela ficou parada a olhar.
Tinha
visto este homem do cimo da casa-torre. Ele era mais alto do que a maioria, mas
quando todos não passam de um pontinho ao longe isso não quer dizer grande
coisa. Contudo, ela era mais baixa do que a maioria, e a diferença marcada
entre a altura deles fez com que, de súbito, ela ficasse profundamente
consciente da sua vulnerabilidade. O que ela não vira da torre era o quão belo
ele era. Pestanas espessas suavizavam e emolduravam olhos escuros, sérios, que,
à luz da tenda, eram como duas manchas. Ossos pronunciados moldavam-lhe a face
e o queixo. Uma boca larga, direita, de lábios algo carnudos, exigia a sua
atenção. O cabelo escuro dava-lhe pelos ombros e estava preso na testa por uma
faixa de tecido enrolado.
Envergava
apenas umas calças largas à camponês, cortadas acima do joelho. As pernas eram
bem torneadas, de músculos esguios e linhas definidas. A mesma elegância
atlética que lhe moldava os ombros largos e lhe esculpia o peito. Com aquela
roupagem primitiva, fazia-lhe lembrar os guerreiros antigos acerca dos quais
lera nos livros de Robert. Ele era o inimigo, mas isso não a impediu de ficar
sem fôlego.
Magnífico.
Assombroso. Pena ela ter de o matar. Ele caminhou até ela. Avaliou
sobranceiramente o seu vestido, cabelo e faces rosadas enquanto retirava a faixa
da testa e passava mão forte pelo cabelo. Ela esperava que ele não conseguisse
vê-la corar, pois a mulher que era hoje nunca se deixaria desconcertar pelo
escrutínio de um homem, por muito belo que ele fosse.
A
expressão dele aligeirou-se e ergueu uma sobrancelha inquiridora. Havia
compreendido a única parte que precisava de saber. Sorriu. Santo Deus, que
sorriso. Lábios juntos, direitos, que mal se erguiam nos cantos da boca.
Absolutamente encantador, subtilmente sugestivo, vagamente escarninho. Covinhas
sedutoras surgiram de um lado e do outro da boca. Aquele rosto belo e aqueles
olhos insondáveis de distantes e pensativos a sensuais e afáveis». In Madeline
Hunter, Mil Noites de Paixão, 2002, Edições ASA, 2012, ISBN 978-989-231-672-7.
Cortesia de EASA/JDACT
JDACT, Madeline Hunter, Literatura, Idade Média,