terça-feira, 7 de novembro de 2023

Dispara, eu já estou morto. Julia Navarro. «E não vim de lado nenhum. Nasci aqui. Na Palestina? Sim, em Israel. Surpreende-a? Não... Na verdade, os meus pais eram russos e os meus antepassados polacos. Há muitos russos de origem polaca; já sabe que a Polónia sempre esteve na mira dos russos…»

jdact

Jerusalém, época actual

« Se lhe parece bem, dar-lhe-ei o questionário que trago preparado e que servirá de base para o relatório que devo redigir. Imagino que vai falar com mais pessoas... Sim, tenho uma longa lista de entrevistas: funcionários, deputados, diplomatas, membros de outras ONG, organizações religiosas, jornalistas... E palestinianos. Imagino que vai falar com eles. Claro, já o fiz. Eles são o motivo do meu trabalho. Antes de vir para Israel estive na Jordânia e tive oportunidade de falar com muitos palestinianos que tiveram de fugir depois de cada conflito.

A senhora perguntava-me pelo sofrimento dos deslocados... Bem, eu poderia falar-lhe durante horas, dias, semanas inteiras sobre o sofrimento. Era difícil acreditar que aquele homem alto e forte, que, apesar da sua idade, emanava confiança em si próprio com aquele olhar cinzento de aço, que mostrava que tinha uma grande paz interior, soubesse verdadeiramente o que era o sofrimento alheio. Não lhe ia negar que tivesse sofrido, mas isso não implicava que fosse capaz de sentir a dor dos outros.

Como é que sabe que aqui houve uma aldeia árabe?, perguntou de repente captando o desconcerto dela. Na minha organização temos informação pormenorizada sobre todas as vilas e aldeias da Palestina, até das que já não existem desde a ocupação. Ocupação? Sim, desde que chegaram os primeiros emigrantes judeus até à proclamação do Estado de Israel, além de tudo o que aconteceu posteriormente. O que é que quer saber? Quero que me fale da política de ocupação dos assentamentos ilegais, das condições de vida dos palestinianos que veem as suas casas demolidas por acções de vingança... da razão por que continuam a levantar assentamentos em lugares que não vos pertencem... Pretendia falar sobre tudo isto com o seu filho. Sei que o Aaron Zucker é um dos mais firmes defensores da política de assentamentos.

Os seus artigos e conferências tornaram-no famoso. O meu filho é um homem honrado, um militar corajoso que serviu no exército, e sempre se destacou por dizer em voz alta o que pensa, sem se preocupar com as consequências. É mais simples lamentar-se pela política de assentamentos, até não dizer nada, do que apoiá-la intimamente. Na minha família preferimos dar a cara. É por isso que estou aqui, é por isso que o Ministério dos Negócios Estrangeiros me mandou falar com o seu filho. É um dos líderes sociais de Israel. A senhora acha que quem defende os assentamentos é quase um monstro...

Marian encolheu os ombros. Não lhe ia dizer que, de facto, era o que pensava. A entrevista não estava a correr como tinha previsto. Dir-lhe-ei o que penso: não sou partidário de que se construam novos assentamentos. Defendo o direito dos palestinianos a terem o seu próprio Estado. Pois, mas o seu filho Aaron pensa justamente o contrário. Mas é comigo que está a falar. E não olhe para mim como se eu fosse um velhinho, não sou nenhum ingénuo. A porta da sala abriu-se e apareceu um jovem alto, vestido de soldado, com uma pistola-metralhadora pendurada ao ombro. Marian assustou-se. É o meu neto Jonas. Com que então a senhora é a da ONG... Desculpe, mas não consegui deixar de ouvir as suas últimas palavras. Gostaria de lhe dar também a minha opinião, se o meu avô me permitir.

O Jonas é filho do Aaron, explicou Ezequiel Zucker a Marian. A política de assentamentos não se deve a um capricho, trata-se da nossa segurança. Olhe para o mapa de Israel, repare nas nossas fronteiras... Os assentamentos fazem parte da frente em que nos vemos obrigados a lutar, afirmou Jonas com tal convicção que Marian ficou incomodada e sentiu uma aversão instintiva face àquele jovem. Lutam contra mulheres e crianças? Que glória há em demolir as casas onde vivem de forma precária as famílias palestinianas?, perguntou Marian.

Por acaso devemos deixar-nos matar? As pedras ferem. E nessas aldeias onde parece que vivem pacíficas famílias também há terroristas. Terroristas? O senhor chama terrorista a quem defende o seu direito a viver na aldeia onde nasceu? Além disso, a política de assentamentos só procura ficar com um território que não vos pertence. As resoluções das Nações Unidas sobre as fronteiras de Israel são suficientemente claras. Mas o seu país tem uma política de factos consumados. Constroem um assentamento nas zonas onde os palestinianos vivem, encurralam-nos, fazem-lhes a vida impossível até conseguirem que se vão embora.

A senhora é uma mulher apaixonada, não sei porque é que se incomoda em vir aqui para redigir um relatório. É evidente que tem as ideias bem arrumadas, nada do que o meu avô ou o meu pai lhe possam dizer mudaria a sua forma de pensar. Estou enganado? Tenho a obrigação de ouvir todas as partes. Tenta cumprir uma formalidade, nada mais. Jonas, já chega, deixemos a senhora Miller fazer o seu trabalho. A voz de Ezequiel Zucker não dava lugar a uma nova resposta do seu neto. Está bem, já estava de saída. E o jovem saiu sem se despedir. Marian leu nos olhos cinzentos de Ezequiel Zucker que ia dar por terminada aquela conversa com a qual ela não tinha sabido lidar, mas não se podia ir embora. Ainda não. Acho que vou aceitar o chá que me ofereceu. Agora era ele quem parecia desconcertado. Não tinha vontade de continuar a conversar com aquela mulher, mas também não se queria mostrar grosseiro.

Quando regressou com o chá encontrou-a a olhar pela janela. Não era uma mulher bonita, mas sim atraente. De estatura média, magra, com o cabelo preto apanhado. Calculou que já há algum tempo deveria ter feito quarenta anos, que estava mais perto dos cinquenta. Sentia-a desassossegada e esse desassossego pareceu-lhe contagiante. Naquela direcção, está Jerusalém, disse ele enquanto colocava a bandeja com o chá numa mesinha baixa. Eu sei, respondeu Marian. Esforçava-se por mostrar um sorriso, mas ele já não parecia disposto a conversar. Antes disse que podia falar semanas inteiras sobre sofrimento... Sim, podia, respondeu ele de forma brusca.

De onde é, Ezequiel? Qual é o seu país de origem? Sou israelita. Esta é a minha pátria. Imagino que para um judeu o mais importante seja sentir que tem uma pátria, disse ela ignorando o tom distante do homem. A nossa pátria, sim. Não foi oferecida. Tínhamos direito a ela. E não vim de lado nenhum. Nasci aqui. Na Palestina? Sim, em Israel. Surpreende-a? Não... Na verdade, os meus pais eram russos e os meus antepassados polacos. Há muitos russos de origem polaca; já sabe que a Polónia sempre esteve na mira dos russos e, de cada vez que estes ficavam com um pedaço de terra polaca, os judeus polacos passavam a ser russos. A vida dos judeus não era fácil na Rússia, de facto não o era em nenhum lugar da Europa, embora a Revolução Francesa tenha dado uma reviravolta à nossa situação. As tropas de Napoleão exportavam a ideia da liberdade onde quer que fossem, mas essas ideias chocaram com a Rússia dos czares». In Julia Navarro, Dispara, eu já estou morto, Editora Bertrand, 2014, ISBN 978-972-252-905-1.

Cortesia de EBertrand/JDACT

JDACT, Julia Navarro, Literatura, Médio Oriente, Conhecimento,