Jerusalém, época actual
« Se lhe parece bem, dar-lhe-ei o
questionário que trago preparado e que servirá de base para o relatório que
devo redigir. Imagino que vai falar com mais pessoas... Sim, tenho uma longa
lista de entrevistas: funcionários, deputados, diplomatas, membros de outras
ONG, organizações religiosas, jornalistas... E palestinianos. Imagino que vai
falar com eles. Claro, já o fiz. Eles são o motivo do meu trabalho. Antes de
vir para Israel estive na Jordânia e tive oportunidade de falar com muitos
palestinianos que tiveram de fugir depois de cada conflito.
A senhora perguntava-me pelo
sofrimento dos deslocados... Bem, eu poderia falar-lhe durante horas, dias,
semanas inteiras sobre o sofrimento. Era difícil acreditar que aquele homem
alto e forte, que, apesar da sua idade, emanava confiança em si próprio com
aquele olhar cinzento de aço, que mostrava que tinha uma grande paz interior,
soubesse verdadeiramente o que era o sofrimento alheio. Não lhe ia negar que
tivesse sofrido, mas isso não implicava que fosse capaz de sentir a dor dos
outros.
Como é que sabe que aqui houve
uma aldeia árabe?, perguntou de repente captando o desconcerto dela. Na minha
organização temos informação pormenorizada sobre todas as vilas e aldeias da
Palestina, até das que já não existem desde a ocupação. Ocupação? Sim, desde
que chegaram os primeiros emigrantes judeus até à proclamação do Estado de
Israel, além de tudo o que aconteceu posteriormente. O que é que quer saber? Quero
que me fale da política de ocupação dos assentamentos ilegais, das condições de
vida dos palestinianos que veem as suas casas demolidas por acções de vingança...
da razão por que continuam a levantar assentamentos em lugares que não vos
pertencem... Pretendia falar sobre tudo isto com o seu filho. Sei que o Aaron
Zucker é um dos mais firmes defensores da política de assentamentos.
Os seus artigos e conferências
tornaram-no famoso. O meu filho é um homem honrado, um militar corajoso que
serviu no exército, e sempre se destacou por dizer em voz alta o que pensa, sem
se preocupar com as consequências. É mais simples lamentar-se pela política de assentamentos,
até não dizer nada, do que apoiá-la intimamente. Na minha família preferimos
dar a cara. É por isso que estou aqui, é por isso que o Ministério dos Negócios
Estrangeiros me mandou falar com o seu filho. É um dos líderes sociais de Israel.
A senhora acha que quem defende os assentamentos é quase um monstro...
Marian encolheu os ombros. Não
lhe ia dizer que, de facto, era o que pensava. A entrevista não estava a correr
como tinha previsto. Dir-lhe-ei o que penso: não sou partidário de que se
construam novos assentamentos. Defendo o direito dos palestinianos a terem o
seu próprio Estado. Pois, mas o seu filho Aaron pensa justamente o contrário. Mas
é comigo que está a falar. E não olhe para mim como se eu fosse um velhinho, não
sou nenhum ingénuo. A porta da sala abriu-se e apareceu um jovem alto, vestido
de soldado, com uma pistola-metralhadora pendurada ao ombro. Marian
assustou-se. É o meu neto Jonas. Com que então a senhora é a da ONG...
Desculpe, mas não consegui deixar de ouvir as suas últimas palavras. Gostaria
de lhe dar também a minha opinião, se o meu avô me permitir.
O Jonas é filho do Aaron, explicou
Ezequiel Zucker a Marian. A política de assentamentos não se deve a um
capricho, trata-se da nossa segurança. Olhe para o mapa de Israel, repare nas
nossas fronteiras... Os assentamentos fazem parte da frente em que nos vemos
obrigados a lutar, afirmou Jonas com tal convicção que Marian ficou incomodada
e sentiu uma aversão instintiva face àquele jovem. Lutam contra mulheres e
crianças? Que glória há em demolir as casas onde vivem de forma precária as famílias
palestinianas?, perguntou Marian.
Por acaso devemos deixar-nos
matar? As pedras ferem. E nessas aldeias onde parece que vivem pacíficas famílias
também há terroristas. Terroristas? O senhor chama terrorista a quem defende o
seu direito a viver na aldeia onde nasceu? Além disso, a política de
assentamentos só procura ficar com um território que não vos pertence. As
resoluções das Nações Unidas sobre as fronteiras de Israel são suficientemente
claras. Mas o seu país tem uma política de factos consumados. Constroem um
assentamento nas zonas onde os palestinianos vivem, encurralam-nos, fazem-lhes
a vida impossível até conseguirem que se vão embora.
A senhora é uma mulher
apaixonada, não sei porque é que se incomoda em vir aqui para redigir um relatório.
É evidente que tem as ideias bem arrumadas, nada do que o meu avô ou o meu pai
lhe possam dizer mudaria a sua forma de pensar. Estou enganado? Tenho a obrigação
de ouvir todas as partes. Tenta cumprir uma formalidade, nada mais. Jonas, já
chega, deixemos a senhora Miller fazer o seu trabalho. A voz de Ezequiel Zucker
não dava lugar a uma nova resposta do seu neto. Está bem, já estava de saída. E
o jovem saiu sem se despedir. Marian leu nos olhos cinzentos de Ezequiel Zucker
que ia dar por terminada aquela conversa com a qual ela não tinha sabido lidar,
mas não se podia ir embora. Ainda não. Acho que vou aceitar o chá que me
ofereceu. Agora era ele quem parecia desconcertado. Não tinha vontade de
continuar a conversar com aquela mulher, mas também não se queria mostrar
grosseiro.
Quando regressou com o chá
encontrou-a a olhar pela janela. Não era uma mulher bonita, mas sim atraente.
De estatura média, magra, com o cabelo preto apanhado. Calculou que já há algum
tempo deveria ter feito quarenta anos, que estava mais perto dos cinquenta. Sentia-a
desassossegada e esse desassossego pareceu-lhe contagiante. Naquela direcção,
está Jerusalém, disse ele enquanto colocava a bandeja com o chá numa mesinha
baixa. Eu sei, respondeu Marian. Esforçava-se por mostrar um sorriso, mas ele já
não parecia disposto a conversar. Antes disse que podia falar semanas inteiras
sobre sofrimento... Sim, podia, respondeu ele de forma brusca.
De onde é, Ezequiel? Qual é o seu
país de origem? Sou israelita. Esta é a minha pátria. Imagino que para um judeu
o mais importante seja sentir que tem uma pátria, disse ela ignorando o tom
distante do homem. A nossa pátria, sim. Não foi oferecida. Tínhamos direito a
ela. E não vim de lado nenhum. Nasci aqui. Na Palestina? Sim, em Israel.
Surpreende-a? Não... Na verdade, os meus pais eram russos e os meus
antepassados polacos. Há muitos russos de origem polaca; já sabe que a Polónia
sempre esteve na mira dos russos e, de cada vez que estes ficavam com um pedaço
de terra polaca, os judeus polacos passavam a ser russos. A vida dos judeus não
era fácil na Rússia, de facto não o era em nenhum lugar da Europa, embora a
Revolução Francesa tenha dado uma reviravolta à nossa situação. As tropas de
Napoleão exportavam a ideia da liberdade onde quer que fossem, mas essas ideias
chocaram com a Rússia dos czares». In Julia Navarro, Dispara, eu já estou
morto, Editora Bertrand, 2014, ISBN 978-972-252-905-1.
Cortesia de EBertrand/JDACT
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