quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Dispara, eu já estou morto. Julia Navarro. «… tentam ver-nos de forma diferente. Mas julgam que ser judeu é algo mau..., atreveu-se a dizer Samuel, dizem que matámos o profeta Jesus. Jesus era judeu. E porque é que o matámos?»

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S. Petersburgo - Paris

«Após várias semanas de viagem, Isaac e Samuel chegaram a Paris; ali souberam as notícias dos distúrbios que estavam a acontecer por toda a Rússia. Assassinaram o czar. Ouvi dizer que há judeus implicados na conspiração, anunciou monsieur Elias. Não pode ser! O czar melhorou as condições de vida da nossa comunidade. O que é que nós, judeus, ganharíamos com o seu desaparecimento?, respondeu Isaac. Parece que alguns estão a fazer justiça com as suas próprias mãos e atacaram algumas aldeias judias das zonas de residência..., acrescentou monsieur Elias.

É a desculpa de que precisavam todos os que se opunham à política do czar para com os judeus! Espero que imperem a razão e a verdade. É terrível que na Rússia não permitam aos judeus saírem das zonas de residência, lamentou-se monsieur Elias. Pelo menos em França podemos viver nas cidades, e aqui mesmo, no coração de Paris. Devemos a maldita ideia das zonas de residência à czarina Catarina. Os conselheiros da Grande Catarina quiseram cortar as asas aos nossos artesãos e mercadores. Mas agora são muitos os judeus que vivem mesmo em São Petersburgo. São necessárias autorizações especiais, mas podem conseguir-se, explicou Isaac.

 Sim, mas não para todos, respondeu monsieur Elias. Ainda bem que a vossa casa não está longe de Varsóvia. Temeria por vocês se vivessem em Moscovo ou em São Petersburgo. Não podiam esconder a preocupação que os invadia. As notícias que chegavam da Rússia eram tão confusas que os faziam temer pelo destino da família. O Samuel e eu vamos regressar imediatamente. Não me acalmarei até ver a minha esposa e os meus filhos. Sei que a minha mãe cuida deles, mas não posso deixá-los sozinhos mais tempo. Eu também não ficarei descansado até saber que chegaste e receber notícias tuas a comunicar-me que estão todos bem. Deves partir assim que possível.

Dois dias depois receberam a visita de um velho amigo de monsieur Elias, um homem bem relacionado na corte. Não podem regressar. Estão a matar centenas de judeus. Os distúrbios começaram em Yelisavetgrad, mas espalharam-se por toda a Rússia, explicou o visitante. Monsieur Elias ficava magoado com a situação. Talvez seja perigoso regressarem..., disse sem muita convicção, porque no fundo do seu coração desejava saber o mais depressa possível que a sua querida filha Ester e os seus netos não corriam qualquer perigo. Não podemos ficar aqui, tenho de regressar. A minha mulher e os meus filhos podem precisar de mim, respondeu Isaac sem vacilar.

Talvez devesses deixar o Samuel comigo. Não para de tossir e há dias em que a febre o deixa prostrado na cama. Eu sei, mas não posso deixá-lo aqui. A Ester nunca mo perdoaria. Ama todos os nossos filhos da mesma forma, mas com o Samuel sofreu muito devido à sua saúde fraca. Se não regressarmos juntos vai pensar que lhe aconteceu alguma coisa. Conheço a minha filha, sei que iria preferir que o Samuel ficasse aqui a salvo. Monsieur Elias não conseguiu convencer o meu avô Isaac, que, assim que pôde, partiu. Viajou com o Samuel numa diligência, puxada por bons cavalos, com outros dois comerciantes que tinham como destino Varsóvia e que, alarmados como eles, regressavam às suas casas. Pai, a mãe está bem? E o Friede e a Anna? Não lhes aconteceu nada, pois não? Samuel não deixava de pedir ao seu pai notícias da sua mãe e dos seus irmãos.

A viagem pareceu-lhes eterna. Mal conseguiam dormir à noite naquelas pousadas, onde, por serem judeus, nem sempre eram bem recebidos. Em  várias ocasiões tiveram até de dormir ao relento, porque não lhes quiseram dar alojamento. Em que é que somos diferentes?, perguntou Samuel ao seu pai uma noite enquanto descansavam juntos numa estreita cama de um mísero hotel na Alemanha. Achas que somos diferentes?, respondeu o bondoso Isaac. Eu vejo-me igual a toda a gente, mas sei que os outros não nos veem iguais a eles e não sei porquê. Não percebo porque há rapazes que não querem brincar connosco, nem porque não vamos com frequência à cidade, e quando o fazemos tu e a mãe parecem ter medo. Caminhamos com a cabeça baixa, como se assim não nos vissem ou incomodássemos menos. É por isso que acho que somos diferentes; temos alguma coisa de que os outros não gostam, mas não sei o que é, por isso é que te pergunto. Não somos diferentes, Samuel, são os outros que tentam ver-nos de forma diferente. Mas julgam que ser judeu é algo mau..., atreveu-se a dizer Samuel, dizem que matámos o profeta Jesus. Jesus era judeu. E porque é que o matámos?» In Julia Navarro, Dispara, eu já estou morto, Editora Bertrand, 2014, ISBN 978-972-252-905-1.

 Cortesia de EBertrand/JDACT

JDACT, Julia Navarro, Literatura, Médio Oriente, Conhecimento,