S. Petersburgo - Paris
«Após várias semanas de viagem,
Isaac e Samuel chegaram a Paris; ali souberam as notícias dos distúrbios que
estavam a acontecer por toda a Rússia. Assassinaram o czar. Ouvi dizer que há
judeus implicados na conspiração, anunciou monsieur Elias. Não pode ser! O czar
melhorou as condições de vida da nossa comunidade. O que é que nós, judeus,
ganharíamos com o seu desaparecimento?, respondeu Isaac. Parece que alguns
estão a fazer justiça com as suas próprias mãos e atacaram algumas aldeias
judias das zonas de residência..., acrescentou monsieur Elias.
É a desculpa de que precisavam
todos os que se opunham à política do czar para com os judeus! Espero que
imperem a razão e a verdade. É terrível que na Rússia não permitam aos judeus
saírem das zonas de residência, lamentou-se monsieur Elias. Pelo menos em
França podemos viver nas cidades, e aqui mesmo, no coração de Paris. Devemos a
maldita ideia das zonas de residência à czarina Catarina. Os conselheiros da
Grande Catarina quiseram cortar as asas aos nossos artesãos e mercadores. Mas
agora são muitos os judeus que vivem mesmo em São Petersburgo. São necessárias
autorizações especiais, mas podem conseguir-se, explicou Isaac.
Sim, mas não para todos, respondeu monsieur
Elias. Ainda bem que a vossa casa não está longe de Varsóvia. Temeria por vocês
se vivessem em Moscovo ou em São Petersburgo. Não podiam esconder a preocupação
que os invadia. As notícias que chegavam da Rússia eram tão confusas que os
faziam temer pelo destino da família. O Samuel e eu vamos regressar
imediatamente. Não me acalmarei até ver a minha esposa e os meus filhos. Sei
que a minha mãe cuida deles, mas não posso deixá-los sozinhos mais tempo. Eu
também não ficarei descansado até saber que chegaste e receber notícias tuas a
comunicar-me que estão todos bem. Deves partir assim que possível.
Dois dias depois receberam a
visita de um velho amigo de monsieur Elias, um homem bem relacionado na corte. Não
podem regressar. Estão a matar centenas de judeus. Os distúrbios começaram em
Yelisavetgrad, mas espalharam-se por toda a Rússia, explicou o visitante. Monsieur
Elias ficava magoado com a situação. Talvez seja perigoso regressarem..., disse
sem muita convicção, porque no fundo do seu coração desejava saber o mais
depressa possível que a sua querida filha Ester e os seus netos não corriam
qualquer perigo. Não podemos ficar aqui, tenho de regressar. A minha mulher e
os meus filhos podem precisar de mim, respondeu Isaac sem vacilar.
Talvez devesses deixar o Samuel
comigo. Não para de tossir e há dias em que a febre o deixa prostrado na cama. Eu
sei, mas não posso deixá-lo aqui. A Ester nunca mo perdoaria. Ama todos os
nossos filhos da mesma forma, mas com o Samuel sofreu muito devido à sua saúde
fraca. Se não regressarmos juntos vai pensar que lhe aconteceu alguma coisa. Conheço
a minha filha, sei que iria preferir que o Samuel ficasse aqui a salvo. Monsieur
Elias não conseguiu convencer o meu avô Isaac, que, assim que pôde, partiu.
Viajou com o Samuel numa diligência, puxada por bons cavalos, com outros dois
comerciantes que tinham como destino Varsóvia e que, alarmados como eles,
regressavam às suas casas. Pai, a mãe está bem? E o Friede e a Anna? Não lhes
aconteceu nada, pois não? Samuel não deixava de pedir ao seu pai notícias da
sua mãe e dos seus irmãos.
A viagem pareceu-lhes eterna. Mal
conseguiam dormir à noite naquelas pousadas, onde, por serem judeus, nem sempre
eram bem recebidos. Em várias ocasiões
tiveram até de dormir ao relento, porque não lhes quiseram dar alojamento. Em
que é que somos diferentes?, perguntou Samuel ao seu pai uma noite enquanto
descansavam juntos numa estreita cama de um mísero hotel na Alemanha. Achas que
somos diferentes?, respondeu o bondoso Isaac. Eu vejo-me igual a toda a gente,
mas sei que os outros não nos veem iguais a eles e não sei porquê. Não percebo
porque há rapazes que não querem brincar connosco, nem porque não vamos com
frequência à cidade, e quando o fazemos tu e a mãe parecem ter medo. Caminhamos
com a cabeça baixa, como se assim não nos vissem ou incomodássemos menos. É por
isso que acho que somos diferentes; temos alguma coisa de que os outros não
gostam, mas não sei o que é, por isso é que te pergunto. Não somos diferentes,
Samuel, são os outros que tentam ver-nos de forma diferente. Mas julgam que ser
judeu é algo mau..., atreveu-se a dizer Samuel, dizem que matámos o profeta
Jesus. Jesus era judeu. E porque é que o matámos?» In Julia Navarro, Dispara, eu já
estou morto, Editora Bertrand, 2014, ISBN 978-972-252-905-1.
JDACT, Julia Navarro, Literatura, Médio Oriente, Conhecimento,