Prologo
«Talvez fosse holandesa ou mesmo
inglesa, mas a Tomás cheirava-lhe que ela viera da Alemanha, não seria do género
alemã-cavalona nem alemã-vaca, mas antes alemã modelo, alta e resplandecente,
uma verdadeira capa de revista. Ora, concluíram os cientistas ingleses, se as
outras duas inscrições continham o mesmo édito, então não seria difícil
decifrar os textos demótico e hieroglífico. Ah!, exclamou a aluna gordinha de óculos,
a mesma vivaça que antes interrogara o professor. Então sempre foi a pedra de
Roseta que forneceu a chave para decifrar os hieróglifos...
Calma, pediu Tomás, erguendo a mão
direita. Calma. Fez uma pausa dramática. A pedra de Roseta tinha três
problemas. Ergueu o polegar. Em primeiro lugar, estava danificada. O texto
grego mantinha-se relativamente intacto, mas faltavam partes importantes do demótico
e sobretudo do hieroglífico. Desapareceu metade das linhas do hieroglífico e as
restantes catorze linhas encontravam-se deterioradas. Ergueu o indicador. Depois,
havia o problema de os dois textos por decifrar estarem escritos em egípcio,
uma língua que se presumia não ser falada há pelo menos oito séculos. Os
cientistas conseguiam perceber quais eram os hieróglifos correspondentes a
determinadas palavras gregas, mas desconheciam o seu som. Juntou o terceiro
dedo. Finalmente, havia o problema de estar muito enraizada entre os eruditos a
ideia de que os hieróglifos eram semagramas, cada símbolo continha ideias completas,
e não fonogramas, onde um símbolo representa um som, a exemplo do que acontece no
nosso alfabeto fonético.
Então como é que eles decifraram
os hieróglifos? A primeira brecha no mistério dos hieróglifos foi aberta por um
prodígio inglês chamado Thomas Young, um homem que, aos catorze anos, já tinha
estudado grego, latim, italiano, hebraico, caldeu, siríaco, persa, árabe, etíope,
turco e... uh... e... deixem-me cá ver... Chinamarquês?, arriscou o brincalhão
da turma. Risada geral. Samaritano, lembrou-se Tomás.
Ah,
então se sabia samaritano é por que era bom rapaz, insistiu o brincalhão, entusiasmado
com o êxito das suas tiradas. Um bom samaritano. Novas gargalhadas. Vamos lá,
vamos lá, disse o professor, que começava a ficar agastado com as piadinhas. Tomás
sabia que todas as turmas tinham o seu palhaço, e este, pelos vistos, era o
palhaço de serviço daquela turma. Bem, o Young levou para as férias de Verão,
em 1814, uma cópia das três inscrições da pedra de Roseta. Pôs-se a estudá-las bem
e houve uma coisa que lhe chamou a atenção. Tratava-se de um conjunto de hieróglifos
rodeados por uma carteia, uma espécie de anel.
Presumiu que a carteia se
destinava a sublinhar algo de grande importância. Ora, pelo texto em grego
sabia que naquela zona se falava do faraó Ptolemeu, pelo que somou dois e dois
e concluiu que a carteia assinalava o nome de Ptolemeu, era uma forma de
importantizar o faraó. Foi nessa altura que ele deu um passo revolucionário. Em
vez de partir do princípio de que aquela era uma escrita exclusivamente ideográfica,
admitiu a hipótese de a palavra estar redigida foneticamente e pôs-se a fazer
conjecturas sobre o som de cada hieróglifo dentro da carteia. O professor
aproximou-se do quadro e desenhou um quadrado D. Partindo do princípio de que
se encontrava ali assinalado o nome de Ptolemeu, presumiu que este símbolo, o
primeiro da carteia, correspondia ao primeiro som do nome do faraó, o p.
Desenhou ao lado uma metade de círculo com a base voltada para baixo C.
Depois, admitiu que este símbolo,
o segundo da carteia, era um í. Fez a seguir um leão deitado de perfil _2^S>
• Este leãozinho, achou ele que representava um /. Novo símbolo
rabiscado no quadro branco, desta feita duas linhas horizontais paralelas
unidas à esquerda <C~T. Aqui julgou ter encontrado um w. Agora
duas facas lado a lado na vertical (1 (]. Estas facas seriam um z.
Finalmente, um gancho de pé I . E este símbolo, um os. Rodou a
cabeça e mirou a turma. Estão a ver? Apontou para os desenhos rabiscados no
quadro e soletrou-os, acompanhando com o indicador. P, t, l, m, i, os.
Ptlmios. Ptolemeu.
Voltou a encarar os alunos e
sorriu com o ar de fascínio que descobriu naqueles rostos frescos. Sabemos hoje
que, na maior parte dos casos, ele acertou nestes sons. Afastou-se do quadro e
aproximou-se da primeira fila. E terminou aqui, meus caros, o papel da pedra de
Roseta. Aguardou que esta ideia assentasse. Foi um primeiro passo muito
importante, é verdade, mas faltava ainda fazer muita coisa. Tendo completado a
primeira leitura de um hieróglifo, Thomas Young foi à procura de confirmações.
Descobriu uma outra carteia no templo de Karnak, em Tebas, e deduziu tratar-se
do nome de uma rainha ptolemaica, Berenika. Também aqui acertou nos sons». In José
Rodrigues dos Santos, Codex 632, Gradiva, 2005, ISBN 978-989-616-072-2.
Cortesia de Gradiva/JDACT
JDACT, José Rodrigues dos Santos, Literatura, Egipto, Conhecimento,