quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Carla Alferes Pinto: A Infanta dona Maria de Portugal, o Mecenato de uma Princesa Renascentista. Parte V. «Dos serões faziam pane as suas damas, Ângela Sigeia como prodigiosa tangedora, Paula Vicente também nos instrumentos ou improvisando um texto teatral, as irmãs Gusmão trovando, inventando e inspirando motes e quadras, Luísa em conversas mais eruditas com qualquer interlocutor em latim»

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Dona Maria, Infanta de Portugal
«A dedicatória e o elogio sentido às virtudes da Infanta, então com 25 anos, são testemunho da esperança num serviço mais compatível com a sua erudição, mais dedicado ao seu tempo e aos seus estudos. Esperança defraudada, uma vez que a Infanta agiu sempre com o sentido de Estado típico da sua condição real, utilizando Luísa, muito provavelmente, como secretária particular e como parte essencial dos seus famosos serões, deixando-lhe tão pouco tempo para si quanto tinha na corte régia.
Nos estudos superiores de Filosofia e diuina Escritura teve por mestre Frei João Soares, religioso de Santo Agostinho, depois bispo de Coimbra, que após andanças e prelecções por diversos países europeus e asiáticos adquiriu vasto conhecimento de línguas, tornando-se um hábil diplomata que esteve presente, tanto na fronteira portuguesa quando da chegada da infanta D. Joana para o casamento com o herdeiro do rei, como nas sessões do Concílio de Trento.
Na caligrafia foi ensinada por Manoel Barata. A técnica deste calígrafo era tão apreciada que Camões lhe dedicou um soneto, em 1572, depois de Barata ter publicado uma «Arte» onde ensinava a bem escrever. D. Maria fez bom uso dos ensinamentos, mostrando-nos uma assinatura firme, com as letras bem delineadas, sem invejar as de um copista.
Cerca de 1537, D. João III deu à irmã um paço próprio, já que os seus rendimentos lho permitiam e a sua condição aconselhava. Da sua «casa» faziam parte alguns dos mais nobres e cultos senhores e damas e, onde, querem os autores dos séculos XVII e XIX que a Infanta repartisse o seu tempo entre missas incontáveis e pias acções:
  • «Despues que fue creciendo, sus ocapaciones mas frequentes, erarn assistiren en los oratorios de Palacio, atenta al S. sacrificio de la Misa. Repartia o tempo para tudo, e depois das primeiras devoções passava á sua Capela, onde ouvia sempre duas Missas com grande attenção; confessava-se os mais dos dias, commungando os que determinava o seu confessor Fr. Francisco Foreiro da Ordem dos Prègadores, Varão acreditado em letras, e em virtudes, o que lhe conseguio merecida estimação no Concilio de Trento. Depois da Missa, se tocavão diversos instrumentos: no fim deste exercicio se seguia outro do lavor, em que com as Damas do seu Palacio bordavão obras, que se empregavão no ornato das Igrejas, e culto Divino: o resto da tarde se gastava em conferencias de estudos: á. noite se recolhião á oração».
Parece-nos que esta imagem é muito redutora já que quer omitir o importante papel político e cultural da mulher no século XVI, imprimindo-lhe aquelas que eram as qualidades feminis das sociedades onde os valores conservadores estavam plenamente enraizados.

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O tempo da Infanta era, certamente, repartido entre as demonstrações quotidianas de uma religiosidade sincera e constante, mas comum à prática dos príncipes e não exagerada à dimensão conventual, até porque a atitude interventora e as ambições político sociais de D. Maria, que os relatos das suas entrevistas e constante presença na corte atestam, não se coadunavam com o recolhimento e beatitude que estes relatos nos querem fazer crer. Aliás, são claramente contestados pela paradoxal afirmação, ainda que exagerada, do patrocínio de «vn Colegio de virtudes, ciências, y Artes» ou de uma «universidade feminina».
D. Maria alimentava, isso sim, e à semelhança de outros príncipes humanistas, esplêndidos serões literários onde o ecletismo dos temas, o vigor e erudição da discussão, o virtuosismo das suas damas e seus convidados, entre os quais brilhavam o infante D. Luís, Luís Vaz de Camões, D. Manuel de Portugal, D. Francisco da Silveira, o conde de Vimioso, continuavam o esplendor das cortes joanina e manuelina.
Apesar de Carolina Michaëlis de Vasconcelos não acreditar na autonomia destes em relação aos serões régios, parece-nos útil transcrever a sua colorida descrição:
  • «Serões certamente diversos dos manoelinos, [...] Os bobos chocarreiros, anões e corcundas graciosos, não eram banidos das salas. Os reis e fidalgos divertiam-se então como d'antes, [...] As representações de autos e farças continuaram. [...] As danças baixas (passeadas) substituiram as altas (puladas). A culta escola italiana ou petrarchesca prevalecia sobre as formas tradicionaes. [...] e poesia heroica aclimara-se e desabrochava, dando pequenos poemas narrativos em oitavas. O romance de cavalaria, a novella pastoril tinha cultores. Em toda a familia real não havia um só varão que não se esforçasse por mantêr acesso o fogo sacro das letras».
Dos serões faziam pane as suas damas, Ângela Sigeia como prodigiosa tangedora, Paula Vicente também nos instrumentos ou improvisando um texto teatral, as irmãs Gusmão trovando, inventando e inspirando motes e quadras, Luísa em conversas mais eruditas com qualquer interlocutor em latim.

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As danças também estavam presentes e D. Maria tinha mestre em sua casa. o interesse de D. Maria pela música é-nos demonstrado no «Panegírico» de Barros; o mesmo não se passava com os despiques e concursos de trovas nos quais a Infanta não tinha gosto em participar. Segundo D. Francisco de Portugal na sua «Arte de Galanteria», devem-se-lhe os seguintes versos:

Se soubera fazer trovas
De que me satisfizera,
Inda assi as não fizera.

Esta aversão de D. Maria à escrita de motes dever-se-á à necessidade de assumir uma postura reservada e digna, acima das pequenas mundanidades, que se não adequavam ao seu estatuto privilegiado. Não restam dúvidas de que a Infanta e as suas damas conviviam com homens quotidianamente e, apesar das reservas de D. Maria, surgiram lendas em torno dos seus possíveis amores. É o caso de Jorge da Silva, sobrinho do cardeal D. Miguel da Silva, de quem se disse ter-se apaixonado pela Infanta, e por isso ter sido preso por ordem de D. João III, e sobre quem Camões teria feito umas voltas à antiga cantiga «Perdigão perdeu a pena». Afinal, D. Jorge da Silva foi preso por ser parente próximo e responsável pelos negócios de D. Miguel da Silva. E a infanta Maria que intercedeu por ele, foi a filha de D. João III, que antes de partir para Castela pede para o ver. Brântome dá-nos também uma versão amorosa do encontro do grão-prior da Lorena com a Infanta, em 1559; segundo ele, o enviado do rei francês ia visitá-la todos os dias, sendo recebido:
  • «mui cortesmente e [ela] agradou-se muito de sua companhia e deu-lhe toda a sorte de presentes. Ente outros, ofereceu-lhe uma corrente para pendurar a sua cruz, toda de diamantes e rubis e pérolas gradas, linda e ricamente trabalhada; e devia valer uns quatro ou cinco mil escudos, dando para três voltas ao pescoço. Julgo que devia valer isso, pois ele a empenhou por três mil, uma vez em Londres, à vinda da Escócia; mas depois de chegarmos a França, mandou-a desempenhar dado que muito a estimava por causa do amor que tinha àquela dama, por quem se encaprichara e apaixonara».
In A Infanta dona Maria de Portugal, o Mecenato de uma Princesa Renascentista, Fundação Oriente, 1998, ISBN 972-9440-90-5.

Cortesia da Fundação Oriente/JDACT