quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Quando Lisboa Tremeu. 1755, o Dia de Todos os Santos vai mudar a vida… Domingos Amaral. «Parecia que a terra inteira estalava, num ribombar ensurdecedor, como se mil carroças e mil cavalos estivessem a passar por ali ao mesmo tempo. […] pedras a voarem, como projécteis cuspidos em várias direcções, o tecto a tombar, nuvens de pó a levantarem-se à sua roda, em turbilhão, e sentiu-se a levantar voo, como se fosse uma pena levada pelo vento, e depois a cair, como por um poço abaixo…»

jdact e cortesia de swp

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«Será que me contou a verdade, que só houve beijos e carícias com o carcereiro? É pouco provável. Quando estão com os homens do seu presente, as mulheres mentem muito sobre o seu passado. Além disso, era compreensível que, naquelas circunstâncias, usar o corpo fosse uma saída. Sei do que falo, sei o que vivi nas prisões árabes. Contudo, o que recordo melhor é o meu tremendo incómodo. A ideia de alguém ter tocado nela uns dias antes de mim despertava-me uma irracional raiva. Seria ciúme? Era certamente, e hoje acredito que foi nesse momento que nasceram os meus fortes sentimentos por ela, a minha paixão. Foi uma sensação tão violenta que me fez mal. Mas não a revelei e ouvi, caladinho, o que ainda tinha para me contar.

[…]
Na manha de sábado, 1 de Novembro de 1755, feriado e Dia de Todos-os-Santos, mal o carcereiro carrancudo lhe deixou a refeição matinal e fechou a porta, irmã Margarida passou a corda pela viga do tecto e preparou um laço. Virou o balde de madeira ao contrário, posicionou-o por baixo da forca e deu início à cerimónia da sua própria morte. Nesse momento, viu de novo o fantasma, o homem de negro, junto à porta. Parecia incentivá-la. Um arrepio de medo percorreu-lhe o corpo, virou-se de costas e não voltou a olhar para lá. Já em cima do balde, passou o laço à volta do pescoço e apertou-o, puxou a corda com força para testar que aguentava o seu peso, rezou uma oração que a mãe lhe ensinara em criança e depois saltou para a frente.
Sentiu um duro apertão na traqueia, e quando o corpo voltou para trás, já embalado, os seus calcanhares bateram no balde, que caiu, rolando pelo chão. Depois, a tensão da corda apertou o garrote no seu pescoço, a garganta sofreu um esmagamento e entrou em pânico. Agarrou os dedos ao laço e procurou libertar-se, mas não conseguiu. O seu peso puxava-a para baixo, abanava os pés e só encontrava o vazio. O descontrolo apoderou-se dela, asfixiava, incapaz de se libertar. Viu que o fantasma se aproximara, a sua sombra escura estava agora a seu lado. Um estranho torpor invadiu-a, a cela ficou enevoada, desfocada. Começava a perder a consciência, a ir-se embora deste mundo, como desejava.
De repente, a mão fria do fantasma tocou-lhe no braço, e era uma mão gelada e branca, Uma mão morta. Esse instante de puro terror, provocou nela uma rebelião inesperada. Contou- -me (muito excitada, esbracejando) que aquele contacto a despertara para o erro absurdo que cometia! O seu corpo e o seu espírito, confrontados com o fim físico, e com a própria presença da morte a seu lado, revoltavam-se, e um súbito desespero, eufórico, tomou conta dela. Não porque quisesse morrer, mas porque, afinal, descobria o quanto queria viver! Esse foi o seu derradeiro pensamento, antes de sentir que o mundo à sua volta desatava a tremer, que as paredes abanavam, que o barulho da chegada da morte era avassalador. Parecia que a terra inteira estalava, num ribombar ensurdecedor, como se mil carroças e mil cavalos estivessem a passar por ali ao mesmo tempo. Os seus olhos semicerraram-se, a sombra escura do fantasma desapareceu, e deduziu que morrera e em breve se encontraria com a mãe e com o pai. Mas, pelas frestas das pálpebras, vislumbrou pedras a voarem, como projécteis cuspidos em várias direcções, o tecto a tombar, nuvens de pó a levantarem-se à sua roda, em turbilhão, e sentiu-se a levantar voo, como se fosse uma pena levada pelo vento, e depois a cair, como por um poço abaixo, subitamente solta da corda. Antes de perder a consciência, pareceu-lhe que sobre ela caía também a cela inteira, como se Deus a quisesse chupar para as entranhas da Terra, na companhia de uma enxurrada de argamassa e caliça. Só quando acordou e se libertou dos escombros é que compreendeu:
  • tinha sido salva de morrer enforcada por um tremor de terra.
In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, o Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras (Oficina do Livro), 2010, ISBN 978-972-46-1986-6.


Cortesia de Casa das Letras/JDACT