O Mensageiro
«(…) Mandou chamar o seu capitão da guarda e ordenou-lhe: - O Mestre
Abraão que se apronte! Preparai uma guarnição de homens e mandai-me chamar o
meu pajem. - Sim Mestre, farei como ordenais ! - e retirou-se, com uma vénia. Alguns
minutos depois, Renato abeirou-se da porta e perguntou se podia entrar. - Entra
Renato, disse-lhe Gualdim, franzindo a testa, quero falar contigo. Depois de uma
breve pausa continuou. - Em breve farás dezoito anos; és já um homem feito!
Demonstras bravura e valentia… também inteligência… características que fazem
de ti um bom e gentil-homem. - Obrigado, senhor - disse Renato, com um enorme
orgulho e alguma timidez. - Estás há algum tempo junto de mim; tenho
acompanhado a tua educação, conforme me pediu teu pai… paz à sua alma... mas
ainda não estás comigo! Já passaram quatro anos desde a sua morte, e sabes que
delegou em mim a responsabilidade da tua educação, pouco antes do seu
passamento.
Ambos se benzeram, e Renato não escondeu algum pesar. – Há muitas
coisas que ainda não sabes a meu respeito, continuou Gualdim, mas que a seu
tempo, te revelarei. Apesar de ainda não teres sido armado cavaleiro, dominas
já a lide das armas e reconheço em ti outras características que serão úteis a
este projecto do Rei. Estou seguro de que serás capaz de honrar a minha
escolha, quando o dever te chamar. És filho de teu pai, um homem justo e virtuoso,
e certo disso, não tenho dúvidas que o destino se te revelará. Estás à minha
guarda e vais começar comigo uma viagem. Vais comigo para Theodomar! - Theodomar,
senhor?... aqui no condado?...
mas... será uma viagem longa?
- O entusiasmo do jovem era bem visível. - Sim Renato. Theodomar, Nabância... ou Sellium
são nomes para o mesmo lugar. Os antigos chamam-lhe Theo – mar, o mar de Deus... conto contigo
Renato, meu jovem amigo? Estás comigo?
- Claro, senhor,
acompanhar-vos-ei, se preciso for, até ao infinito. Irei, se assim o desejardes.
Estou convosco. Sois meu Mestre e Senhor, farei o que vos aprouver! - Renato
sabia que muitos perigos se iriam, por certo, atravessar no caminho, mas estava
confiante. Tinha fé. Ambos levaram a mão ao peito em sinal de promessa, tocando
os corações com o punho fechado. Em breve começariam a viagem. Gualdim Pais,
com a sua voz forte e possante cantarolava, feliz, uma melodia antiga.
Sentia-se cheio de energia.
Destino Sombrio
O dia nascia, anunciando-se sombrio. Atiçado pelo vento, o fogo rangia
furiosamente, carregando os céus de uma atmosfera densa e alaranjada. O fumo
tornava o ar irrespirável. Na granja de Turquel dos coutos de Al-Cobaxa
alguns casebres eram consumidos pelas chamas, deixando diversas famílias em
alvoroço. As pessoas da aldeia vizinha contemplavam, amedrontadas, o cenário de
terror, e comentavam os acontecimentos da noite anterior. Era já a terceira vez
esse ano que as populações de Turquel, Maiorga e Évora de Al-Cobaxa se rebelavam
contra a prepotência dos monges. Supervisionados pelos irmãos conversos [existiam
três tipos de monges: os noviços, que
ainda não tinham professado; os professos,
que recebiam o hábito branco e faziam os votos de pobreza, castidade e
obediência e os conversos, que se
caracterizavam por usar barba, renunciar aos seus bens pessoais e fazer trabalhos
servis], que por causa da sua barba comprida e bigode receberam a alcunha de barbudos, homens e mulheres eram
explorados a troco de quase nada; trabalhavam para que o excedente da produção
agrícola enriquecesse a Ordem de Cister. Os irmãos conversos eram a segunda comunidade
do mosteiro. A sua função nos lugares conventuais era de subalternidade
estando-lhes destinados os trabalhos mais rudes.
No dia anterior, depois de uma tarde de provocações junto ao Mosteiro
de Santa Maria de Al-Cobaxa, em que as populações unidas, procuravam junto da
comunidade cisterciense [os monges de Cister (Cistel) ou de Cluny têm origem
nos beneditinos. Cistel uma localidade ao Sul de Dijon, onde nasce o conde
Henrique. Mantêm o mesmo lema dos seus antecessores ora lege et
labora (reza lê e trabalha)] o apoio para os seus males
e injúrias, a tragédia aconteceu! Um grupo de camponeses combinara juntar-se ao
pôr-do-sol, no final dos trabalhos, armado de utensílios agrícolas e carregando
consigo a vontade de justiça que animava os seus corações famintos. Vestiam
roupagens pobres e defendiam apenas as necessidades básicas que ansiavam
proporcionar às suas famílias. Tinham fome e os tributos que pagavam aumentavam
assustadoramente.
Ao fim de algumas horas de protesto, os homens de Maiorga, animados já
pelo vinho, começaram numa troca de violências verbais que acabaram em conflito
com as restantes gentes das granjas vizinhas. Sem explicação aparente, num acto
de deplorável desespero, viram-se, ao fim de breves minutos, envoltos em acesas
e inúteis escaramuças, resultando daí um triste cenário de rostos
ensanguentados, corpos feridos, roupagens desfeitas e um cheiro de vingança que
viria a encobrir as verdadeiras razões do massacre que se aproximava. Sancho
Viegas, um camponês robusto, de carácter firme e decidido, encabeçava a revolta
do povoado de Turquel. O seu lavor era o trabalho do ferro e demais metais. A
sua impulsividade nem sempre lhe trouxera bons augúrios, no entanto, era um
homem capaz de lutar até ao seu limite pelas causas em que acreditava e isso
merecia a admiração dos restantes aldeões. Já se habituara a contar com
diversos inimigos, especialmente aqueles que ficavam incomodados com o facto de
ser irmão do mestre dos conversos, fr. Martinho Viegas, monge de coro que
chefiava as granjas de Maiorga e Turquel».
In Maria João Martins Pardal e Ezequiel Passos Marinho, A Comenda
Secreta, Ésquilo, Lisboa, 2005, ISBN 972-8605-58-7.
Cortesia de Ésquilo/JDACT