quinta-feira, 25 de julho de 2013

As Magias. Herberto Helder. «Durante um instante, fala-nos com a sua vida, e falamos-lhe com os nossos olhos. Quando deixa de lá estar, já não está, é como se nada houvesse acontecido»

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«(…) Mas as palavras não são apenas palavras. Têm longas raízes tenazes mergulhadas na carne, mergulhadas no sangue, e é doloroso arrancá-las. Palavras aprendidas, reconhecidas, hábitos, parasitas, eram elas que destilavam veneno. Mas Iniji não pede que se escolha. Não se trata de mudar de vida, mudar de rosto ou nome. Iniji só deseja que nos lembremos. A língua fora do tempo, fora do espaço, a língua que se fala eternamente e sabe esperar por nós: aparece quando já, se não esperava, no céu branco, traça as suas pequenas vias negras que não conduzem a sítio nenhum. Não haverá partida. Durante um instante, fala-nos com a sua vida, e falamos-lhe com os nossos olhos. Quando deixa de lá estar, já não está, é como se nada houvesse acontecido. Será forçoso então viver sem Iniji? Voltar a elas, lá em baixo, às palavras que surdamente resmoneiam, rosnam? Não se pode saber: estamos cercados pelo vento.

Iniji
[…]
Se tu vais Njeu
Njá vá dá
Se tu não njá
njarrá rá vais

Reboques
que a rebocam
que ela reboca

Aonde regressar?
Foi-se o coração do quarto

Repetição sempre repetida
Oh Dormir, dormir numa ânfora

Paralisia nas águas
paralisia nos campos

Sofre-se aqui a suprema fealdade
o ataque das agulhas voadoras

O avesso do perfume, não sabem, eles
O raio não é feito para cabeças de crianças
mas está lá
recreando-se, para ele, para nada, para criar um trovão

As montanhas de Niniji estão condenadas
Recôncavos, depressões, poços
Segundo o mundo, os males

Fechou-se a porta das viagens
no túmulo jaz lniji

Misturados ao insalubre dos fundos
contrários caracteres ficaram nela,
o torturante do fogo junto ao monótono da água
junto ao inconsistente, ao imperceptível do ar.

E sempre
o corpo sem vida como a rotação da mó

Lá onde não existe nenhuma clareira
nascentes, oferendas
os infindáveis bordados da teia da aranha invisível
tecem árvores com os meus pensamentos
não posso fazer nada

Somente as amarguras grandes
somente a contínua continuação
As escalas devoraram a melodia

debaixo do tecto, o telhado
debaixo do soalho, o leito
na estopa os sinos

Uma salamandra devorou o meu fogo…

Este coração já se não entende com os corações este coração
não reconhece ninguém na turba dos corações
Corações cheios de gritos, de ruídos,
de bandeiras

este coraçáo náo é desenvolto com estes corações
este coração esconde-se destes corações
este coração não se compraz com estes corações.

Oh cortinas, cortinas e ninguém vê Iniji

Stella, Stella constelada
jâte nío levantas para mim, Aurora

Tão pesados
táo pesados
tão taciturnos seus monumentos
tão impérios, tão quadriláteros
[…]

Poema de Henri Michaux

In As Magias, Herberto Helder, Poemas mudados para Português, Assírio & Alvim, edição 0257, 2010, ISBN 978-972-37-0086-2.

Cortesia de Assírio e Alvim/JDACT