O Bastardo. Na Ribeira das Naus
«(…) Tudo mudou! - prosseguiu Albuquerque – Castela seguirá os destinos
da grande monarquia que se formou em volta do trono de El-rei Fernando, o
Católico. - Ou melhor se poderia dizer da rainha Isabel, que vale bem o melhor
dos reis, tal é a grandeza do seu ânimo - observou Francisco. - Melhor o sabeis
vós do que eu, que aos dois valorosamente haveis servido - volveu Albuquerque.
Seja, porém, como for, é bem claro que também Castela se volta para a aventura
dos mares, tomando o caminho que as nossas caravelas abriram, no tempo do
senhor infante Henrique. Aprenda a ler cartas de marear quem tiver ânsias de glória
troque a espada pela cana do leme como o genovês que ali veio o ano passado alardear
as suas prosápias de descobridor das ilhas do Zipango. Vereis que há-de ir atrás
dele a cobiça espanhola em busca do oiro e das especiarias do Levante.
Se assim for, quando algum dia os nossos chegarem à Índia, se lá forem,
andará já o Oriente enxameado de castelhanos e aragoneses - observou Francisco.
- Perdoai, se de algum modo vos contradigo – acudiu o judeu, mas creio bem que
tal não sucederá. Cristóvão Colombo prometera encontrar essa Índia de que messer Marco Pólo contara maravilhas no
seu livro do Cathaio e do Zipango, e para se não confessar em
erro…
- Que se o foi, como entendo -
atalhou Albuquerque – boa culpa cabe também ao sábio Toscanelli, a quem
o genovês pedira conselho. Como em tempo lho havia pedido o senhor rei Afonso
V, a respeito das terras onde amadurecem as especiarias. Mas nem ao rei de Portugal
nem ao aventureiro de Génova podia o sábio florentino dizer outra coisa que não
fosse uma suposição colhida em livros de antigos geógrafos. Cristóvão Colombo
não quer dar o braço a torcer, e é talvez intento seu realçar a sua aventura no
fingimento de haver encontrado as terras do Zipango. - Mas olhai, mestre
Salomão Zacuto - redarguiu Albuquerque - olhai que no ano passado ele próprio teve
a audácia de o dizer aí por Lisboa, mostrando, como testemunho da sua verdade,
os cativos e as coisas que pudera trazer das terras encontradas.
- Tenho um traslado do livro de messer Marco Pólo; atentamente o hei
lido e meditado e, do ensinamento que dele colhi e das falas que tive com o
próprio genovês, sondando nele disfarçadamente todos os particulares de sua viagem,
vim ao convencimento de que, ou nunca leu o livro do veneziano e só das
maravilhas contadas ouviu falar por alto, ou, se bem o conhecia, a todos nos
quer embair, fingindo haver achado o remoto Oriente. O mais certo será que
nunca o houvesse lido, bem que seja homem de saber. O que ele viu e conta da
sua viagem em nada se combina e parece com o que messer Marco Pólo referiu. Outras terras encontrou – concluiu o
judeu – novas terras, certamente, de que pilotos portugueses haviam já trazido
vaga notícia, tais como um tal Afonso Sanches.
- E não falta quem diga -
acrescentou Albuquerque - que esse tal piloto legara à hora da morte ao
apregoado genovês, genro de Bartolomeu Perestrelo, uns certos papéis da sua
viagem a umas novas terras das bandas de oeste. - Terras de entranhas de oiro -
prosseguiu o judeu - mas não as do Zipango. - Mas lembrai que El-rei
teve dúvidas a tal respeito – redarguiu Francisco - e, pelas ter, havia
resolvido que uma armada fosse verificar se o descobrimento do genovês ofendia
as obrigações do tratado das Alcáçovas, entrando na limitação das
paragens que Portugal tem o direito de descobrir. - Assim é, Francisco de
Almeida – confirmou o judeu - e por tal sinal vos escolheu Sua Alteza para capitão-mor
dessa armada. Mas não se houvesse convencido El-rei de que o genovês não tinha
chegado às Índias, e não seriam os rogos do Sumo Pontífice, nem as boas palavras
de amizade do enviado de Castela, que do seu propósito lograriam demover o nosso
rei João II.
-Seja como for, mestre Salomão -
atalhou Albuquerque - a boa verdade é que o tempo vai agora para os
embarcadiços das caravelas da Mina, e bem percebeis com qual razão a espada que
batalhou em Marrocos e Otranto se não pode honrar agora a golpear
os negros boçais do Manicongo. Quanto à Índia, Deus sabe o que será, se algum
dia lá formos. - Está o cometimento em excelentes mãos, e anda-me a dizer o coração
que lá hão-de ir os Portugueses, e quem sabe se também vós, meus ilustres fidalgos? - disse o
judeu calorosamente, com uns grandes ares proféticos. - Se algum dos dois
houver de ir lá - notou Francisco, sorrindo - esse tal será Afonso de
Albuquerque, mais entendido do que eu na arte de navegar. - Primeiro se
lembrará de vós El-rei, que já vos confiou o mando de uma armada - retorquiu-lhe
Albuquerque.
- E com meu pai e senhor, certo
iria eu também, mestre Salomão - disse timidamente o pequeno, corando muito. -
Pois certo é que haveis de ir, meu querido menino - respondeu-lhe o judeu
carinhosamente. - Tendes ares de profeta, mestre Salomão - volveu-lhe Francisco
de Almeida, rindo - O pior é que o descobrimento ainda não está feito, e as
naus que hão-de intentá-lo aí as tendes ainda em esqueleto. - Tudo El-rei traz
prevenido e disposto. Será mais cedo do que muita gente supõe. Olhai como as
coisas da armada se vão aumentando! Vede aí, toucadas de pendões e galhardetes,
aquelas donairosas caravelas já abastecidas de artilharia, como até nossos dias
se não havia visto em tais navios». In António Campos Júnior, Guerreiro e Monge,
Romance Histórico, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1952.
Cortesia de L. R. Torres/JDACT