sexta-feira, 5 de julho de 2013

O Ano da Morte de Ricardo Reis. José Saramago. «São contratorpedeiros, senhor, nossos, portugueses, é o Tejo, o Dão, o Lima, o Vouga, o Tâmega, o Dão é aquele mais perto. Não fazem diferença, podiam mesmo trocar-lhes os nomes…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Escolher modos de não agir foi sempre a atenção e o escrúpulo da minha vida. In Bernardo Soares

«(…) Consoante vão pondo pé em terra, correm a abrigar-se, os estrangeiros murmuram contra o temporal, como se fôssemos nós os culpados deste mau tempo, parece terem-se esquecido de que nas franças e inglaterras deles costuma ser bem pior, enfim, a estes tudo lhes serve para desdenharem dos pobres países, até a chuva natural, mais fortes razões teríamos nós de nos queixarmos e aqui estamos calados, maldito inverno este, o que por aí vai de terra arrancada aos campos férteis, e a falta que ela nos faz, sendo tão pequena a nação. Já começou a descarga das bagagens, sob as capas rebrilhantes os marinheiros parecem manipanços de capuz, e em baixo os bagageiros portugueses mexem-se mais à ligeira, é o bonezinho de pala, a veste curta, de oleado, assamarrada, mas tão indiferentes à grande molha que o universo espantam, talvez este desdém de confortos leve a compadecerem-se as bolsas dos viajantes, porta-moedas como se diz agora, e suba com a compaixão a gorjeta, povo atrasado, de mão estendida, vende cada um o que tiver de sobejo, resignação, humildade, paciência, assim continuemos nós a encontrar quem de tais mercadorias faça no mundo comércio.
Os viajantes passaram à alfândega, poucos como se calculava, mas vai levar seu tempo saírem dela, por serem tantos os papéis a escrever e tão escrupulosa a caligrafia dos aduaneiros de piquete, se calhar os mais rápidos descansam ao domingo. A tarde escurece e ainda agora são quatro horas, com um pouco mais de sombra se faria a noite, porém aqui dentro é como se sempre o fosse, acesas durante todo o dia as fracas lâmpadas, algumas queimadas, aquela está há uma semana assim e ainda não a substituíram. As janelas, sujas, deixam transluzir uma claridade aquática.
O ar carregado cheira a roupas molhadas, a bagagens azedas, à serapilheira dos fardos, e a melancolia alastra, faz emudecer os viajantes, não há sombra de alegria neste regresso. A alfândega é uma antecâmara, um limbo de passagem, que será lá fora. Um homem grisalho, seco de carnes, assina os últimos papéis, recebe as cópias deles, pode-se ir embora, sair, continuar em terra firme a vida. Acompanha-o um bagageiro cujo aspecto físico não deve ser explicado em pormenor, ou teríamos de prosseguir infinitamente o exame, para que não se instalasse a confusão na cabeça de quem viesse a precisar de distinguir um do outro, se tal se requer, porque deste teríamos de dizer que é seco de carnes, grisalho, e moreno, e de cara rapada, como daquele foi dito já, contudo tão diferentes, passageiro um, bagageiro outro. Carrega este a mala grande num carrinho metálico, as duas outras, pequenas em comparação, suspendeu-as do pescoço com uma correia que passa pela nuca, como um jugo ou colar de ordem.
Ca fora, sob a protecção do beiral largo, pousa a carga no chão e vai procurar um táxi, não costuma ser necessário, habitualmente há-os por ali, à chegada dos vapores. O viajante olha as nuvens baixas, depois os charcos no terreno irregular, as águas da doca, sujas de óleos, cascas, detritos vários, e é então que repara em uns barcos de guerra, discretos, não contava que os houvesse aqui, pois o lugar próprio desses navegantes é o mar largo, ou, não sendo o tempo de guerra ou de exercícios dela, no estuário, largo de sobra para dar fundeadouro a todas as esquadras do mundo, como antigamente se dizia e talvez ainda hoje se repita, sem cuidar de ver que esquadras são. Outros passageiros saíam da alfândega, acolitados pelos seus descarregadores, e então surgiu o táxi espadanando águas debaixo das rodas. Bracearam os pretendentes alvoroçado, mas o bagageiro saltou do estribo, fez um gesto largo. É para aquele senhor, assim se mostrando como até a um humilde serventuário do porto de Lisboa, quando a chuva e as circunstâncias ajudem, é dado ter nas mãos sóbrias a felicidade, em um momento dá-la ou retirá-la, como se acredita que Deus a vida. Enquanto o motorista baixava o porta-bagagens fixado na traseira do automóvel, o viajante perguntou, pela primeira vez se lhe notando um leve sotaque brasileiro, Por que estão na doca aqueles barcos, e o bagageiro respondeu, ofegando, ajudava o motorista a içar a mala grande, pesada. Ahn, é a doca da marinha, foi por causa do mau tempo, rebocaram-nos para aqui anteontem, senão eram bem capazes de garrar e ir encalhar a Algés.
Chegavam outros táxis, tinham-se atrasado, ou o vapor atracara antes da hora esperada, agora havia no terreiro feira franca, tornara-se banal a satisfação da necessidade. Quanto lhe devo, perguntou o viajante. Por cima da tabela é o que quiser dar, respondeu o bagageiro, mas não disse que tabela fosse a tal nem o preço real do serviço, fiava-se na fortuna que protege os audaciosos, ainda que descarregadores. Só trago dinheiro inglês comigo. Ah, isso tanto faz, e na mão direita estendida viu pousar dez xelins, moeda que mais do que o sol brilhava, enfim logrou o astro-rei vencer as nuvens que sobre Lisboa pesavam.
Por causa dos grandes carregos e das comoções profundas, a primeira condição para uma longa e próspera vida de bagageiro é ter um coração robusto, de bronze, ou redondo teria caído o dono deste, fulminado. Quer retribuir a excessiva generosidade, ao menos não ficar em dívida de palavras, por isso acrescenta informações que lhe não pediram, junta-as aos agradecimentos que não lhe ouvem. São contratorpedeiros, senhor, nossos, portugueses, é o Tejo, o Dão, o Lima, o Vouga, o Tâmega, o Dão é aquele mais perto. Não fazem diferença, podiam mesmo trocar-lhes os nomes, todos iguais, gémeos, pintados de cinzento-morte, alagados de chuva, sem sombra viva nos conveses, as bandeiras molhadas como trapos, salvo seja e sem ao respeito querer faltar, mas enfim, ficámos a saber que o Dão é este, acaso tornaremos a ter notícias dele».

In José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Editorial Caminho, Lisboa, 1995, ISBN 972-21-0286-9

Cortesia de Caminho/JDACT