quinta-feira, 25 de julho de 2013

Guerreiro e Monge. Romance Histórico. Campos Júnior. «Ouvia-se iá próximo o tropel da companhia dos ginetes de El-rei sobre as pedras da “rua Nova”, que João II havia pouco tempo mandara calçar. Os cavalos, de orelhas fitas e olhares inquietos, escarvavam na areia impacientes e soltavam o seu relincho estridente»

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O Bastardo. Na Ribeira das Naus
«(…) Salomão Zacuto indicava as primeiras caravelas que em Portugal e na Europa foram armadas de artilharia de grosso calibre. A primeira fora artilhada em Setúbal com bombardas de bronze, por ordem de João II, que muito se havia entregado ao estudo do armamento dos navios e muito a peito havia tomado os progressos da artilharia, mandando proceder ao fabrico de peças de bronze. - E para que se não ficasse por uns pequenos baixéis da carreira da Mina - prosseguiu Zacuto - ali se está embalando no rio aquela alterosa nau de mil tonéis, a maior que ainda se viu cá; tão grande navio que certamente iguala, se não excede, as maiores galés de Veneza!
E o moço Lourenço seguia a indicação do judeu, num olhar de infantil entusiasmo. - Bem compreende El-rei que só nos mares o reino alcançará tornar-se poderoso, à semelhança de Génova e de Veneza. É Portugal tão pequeno estado que seria loucura sonhar outra coisa que não fossem armadas para segurar o tráfico do Oriente e feitorias para abastecer as armadas. - Parecer diverso é o meu, Francisco – objectou o estribeiro-mor do Rei com excepcional vivacidade e como se uma recatada ambição lhe lampejasse no olhar - Nações, que principiaram pequenas, foram essas as que no mundo talharam mais dilatados impérios. Entre os livros do paço real existe um velho códice, que há cerca de vinte anos um moço escudeiro de el-rei Afonso V costumava ler apaixonadamente, nas suas horas de repouso. Conta a vida e os feitos de Alexandre, o Grande, o velho livro latino. Em tal livro aprendi eu, Francisco de Almeida, como as nações pequenas se tornam impérios. Se algum dia os nossos forem à Índia, se lá formos...
E Albuquerque não pôde concluir a frase, ou calculadamente aproveitou o ensejo de a deixar incompleta. Por cima das muralhas do Castelo estrondeavam foguetes, e a este sinal vibraram os sinos das numerosas igrejas da cidade. Chegavam até à Ribeira os sons agudos das trombetas e charamelas da escolta real, que saía do Castelo. Um ruído espantoso de vozes revoou da multidão irrequieta. - É El-rei que sai da Alcáçova - disse o judeu. E o moço Lourenço, quase de pés nos estribos, olhos fitos na ladeira do Castelo, o corpo agitado em estremecimentos de ingénua comoção, exclamou: - Vem ver e baptizar as naus da Índia! - Ai, meus ilustres fidalgos! No prazer de vos ouvir, de todo me passou que alguém me está aguardando a bordo de uma galera de Veneza, que esta madrugada entrou!
 - E não ficais, Salomão Zacuto, agora que vai chegar El-rei? - perguntou Lourenço. - Bem quisera ficar, meu querido menino, mas por mim espera quem nada conhece da cidade e muito me foi recomendado de Veneza. - Ides agora buscá-lo ao navio? - perguntou Francisco. - Irei ao cais do Corpo Santo, pois que defronte dele lançou ferro a galera Santa Fé, conforme o aviso que me deram. Se ainda o meu hóspede não houver desembarcado, certo será que terei de o ir buscar a bordo. - Daqui ao cais maravilha será que logreis atravessar por tamanha multidão - observou Albuquerque. Conheço bem o anadel dos espingardeiros, e fio que por sua intervenção me será dado romper para o cais. – Pois ide em paz, mestre Salomão Zacuto – disse-lhe Francisco, e logo acrescentou, como recordando-se subitamente-Ah! É verdade, que de todo se me ia varrendo da memória. Dizei ao mancebo vosso protegido, esse de quem me haveis falado, que em minha casa me procure depois de amanhã, para tratarmos o que sabeis.
 - Por ele e por mim vos beijo as mãos, Francisco. E em qual ocasião deverá ir, sem que se vos torne molesto? - Logo da banda de manhã. Pelo que dele me haveis dito, certo será que nos entenderemos a contento. - Nisso creio, Francisco. - Ide, ide, enquanto o aperto se não torna maior com a chegada de El-rei, que não poderá tardar. Salomão saudou Albuquerque e os Almeidas, e tomou caminho por entre a multidão.

Ouvia-se iá próximo o tropel da companhia dos ginetes de El-rei sobre as pedras da rua Nova, que João II havia pouco tempo mandara calçar. Os cavalos, de orelhas fitas e olhares inquietos, escarvavam na areia impacientes e soltavam o seu relincho estridente. As filas dos espingardeiros mais comprimiam a multidão, para abrir caminho à comitiva, já muito próxima da Ribeira. - Almas de Belzebu, para trás! - bramia o anadel dos espingardeiros com a bigodeira ferozmente encrespada. Pelas Portas da Ribeira desembarcaram as primeiras filas da companhia dos ginetes. Está-lhes o sol fulgindo em lampejos rutilantes nos capacetes, nos arneses, na longa lâmina das espadas. Branqueja como espuma o suor na anca dos cavalos, insistentemente refreados. A multidão reconcentra-se instintivamente, num movimento de surpresa e de receio. Vinham a cavalo e descobertos os porteiros da cana e os moços da estribeira; depois, os homens das charamelas com os seus trajes de vivas cores». In António Campos Júnior, Guerreiro e Monge, Romance Histórico, Livraria Romano Torres, Lisboa, 1952.

Cortesia de L. R. Torres/JDACT