segunda-feira, 8 de julho de 2013

Londres. Cantos Indecisos. Cânticos. Teixeira de Pascoaes. «… num espelho e também da sua história no que ela tem de secreta ou de fantástica, mas sobretudo através da língua onde os fonemas formam o arco que lança a flecha do sentido, é o que essencialmente conspira na poesia de Pascoaes para abater o espírito que nega»

jdact

Londres
Cidade fabulosa, imensa Babilónia,
Londres! Com mais judeus que as terras da Judeia;
mais polacos talvez que os campos da Polónia,
mais sombras que Herculano e Tebas e Pompeia...

Mais segredos que, ao sol, a Esfinge no deserto;
mais neve do que um cerro altivo de montanha;
mais bruma que a manhã futura do Encoberto,
mais lendas que, ao luar, os bosques da Bretanha...

Mais nautas que a Fenícia e audazes mercadores;
mais bruxas do que Endor, mais múmias do que o Egipto…
Imensa exposição de sonhos e de dores;
fantástica cidade à sombra do Infinito!

Cidade que o nevoeiro embriaga e espectraliza.
Torres e chaminés, no ar, desconjuntadas.
Ó palácios de sonho, ó pontes do Tamisa,
formas que o vento esculpe em névoas desvairadas.

Imagem do tumulto em cinza e pedra erguida,
na noite embriagada e rubra, toda acesa
de desejos sem nome... E, ao longe, escurecida,
tendo no rosto negro uns olhos de tristeza.

Ó gélida atmosfera em tons incandescentes,
chorando o seu silêncio escuro e primitivo...
Negros céus boreais brumosos e gementes,
sombras gritando luz, nuvens em sangue vivo.

Vozes soltas, canções, ruídos, movimentos!
Como sofres, ó noite, e em sonhos maus te perdes!
Visagens palpitando, aspirações, tormentos,
eléctricos fugindo entre faíscas verdes.

Vitrines, onde aluz multicolor se exalta,
com as gotas de chuva em danças de loucura;
doida iluminação que as trevas sobressalta
e reclames de fogo a rir na névoa escura.

Ruidosa escuridão nocturna... Pesadelo
que se esvai, quando a aurora, inerte e arrefecida,
sobre casas sem fim entorna o seu cabelo
grisalho, de velhinha e virgem consumida.

Na bruma, vejo erguer-se histórica, espectral,
a Tower que um terror lendário em nós derrama...
E na esplanada, à chuva e ao vento glacial,
corvos do rei Artur, pingando spleen e lama.

Ó docas junto ao rio em ondas amarelas;
guindastes a gemer, homens a trabalhar.
Paquetes fumegando, iates de brancas velas.
Uns atracam ao cais, vão outros para o mar.

Mistress French falando às Miss feministas.
Trafalgar é um jardim de rosas que são almas.
Vede em rostos de neve auroras imprevistas,
E em revoadas de som há frenesis de palmas!

Westminster que sobe em flechas para os céus,
meus olhos, por acaso, extáticos, alcançam.
Grande templo desnudo, onde é invisível Deus,
e onde junto a um altar há poetas que descansam.

Hyde Park, jardim com águas estagnadas,
velhas árvores de luto, em lágrimas, absortas...
Campinas de verdura em cinzas esfumadas,
onde o vento ao passar semeia folhas mortas.

O vento que ao passar nas árvores suspira,
e parece levar nas mãos, desfeita em choro,
ó Shelley da tristeza, a tua eterna lira
que tem ao dar-lhe o sol líquidas cordas de ouro!

Grandes árvores gemendo em parques lacrimosos;
casas marmorizando a fluida e etérea bruma.
Transeuntes que têm perfis misteriosos...
Este fala, sorrindo; aquele cisma e fuma.

Andam sonhos na névoa, angústias, nem eu sei!
A imensa procissão de gente não tem fim!
Ó vultos de esplendor que nunca mais verei,
e ficastes vivendo, em alma, dentro em mim...

E via-me perdido e anónimo estrangeiro
naquela multidão fantástica de gente,
a que só me prendia acaso, vagamente,
idêntica impressão de frio e nevoeiro...
[…]

Parte do poema Londres de Teixeira de Pascoaes, in ‘Londres’ 1915

In Teixeira de Pascoaes, Londres, Cantos Indecisos, Cânticos, introdução de António Telmo. Edição de António Cândido Franco, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002, ISBN 972-37-0687-3.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT