terça-feira, 9 de julho de 2013

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «Que dizeis? - espantou-se o rei, que irracionalidade quereis transmitir-me? Que vindes dizer-me neste dia de aleluias, em que o Senhor me escolheu e a mais nenhum para governar Portugal? Escuta bem, mestre!»

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«(…) É isso mesmo que se prepara sem demora para dizer ao rei: - Senhor, adiai o acto de investidura até passar o meio-dia, rogo-vos. Por sua vez, o que lhe responderá Duarte perante tão aziago palpite, na hora do seu contentamento. – Que dizeis? - espantou-se o rei, que irracionalidade quereis transmitir-me? Que vindes dizer-me neste dia de aleluias, em que o Senhor me escolheu e a mais nenhum para governar Portugal? Escuta bem, mestre! Não quero nem ouvir falar do que só Deus é capaz de decidir. Artes misteriosas, maus auspícios, não são hoje para aqui chamados, e o momento, de tão transcendente, só ao Altíssimo diz respeito, a mais ninguém, muito menos aos seres humanos como tu, que nem és da religião perfeita. Além disso, não vos encomendei nada nem tenciono seguir os vossos conselhos, porque Deus é o maior e é por Ele e com Ele que penso reinar.
Conversa acabada, pensou Duarte. Enganou-se. O físico, perplexo, entre a importância que dava à descoberta e a injustificada rejeição do infante, não iria nem por sombras ficar-se por ali. Artes misteriosas? O futuro rei de Portugal não estava a ser justo com uma arte que já o tinha beneficiado em consultas anteriores, insurgia-se o judeu em silêncio. Mestre Guedelha, fiel aos ensinamentos dos antigos, baseava os seus estudos de medicina e os diagnósticos em determinações astrológicas, fenómenos para ele infalíveis, vindos do Alto, tal como o rei, que olhava com reverência para o Céu. Um usava os astros, o outro o Protector Celestial.
O momento era delicado. O físico, depois de consultar o pensamento, desesperado por o rei não lhe prestar a atenção que pensava merecer decidiu dizer-lhe o que descobrira. - Senhor, a consulta que fiz aos astros é bem clara. Deveis deixar passar o meio-dia para logo acederdes à real sucessão - sentenciou. A frase, dita num tom imperativo, fez Duarte, mais que surpreender-se, indignar-se, enquanto Guedelha se empertigava, profundamente convicto do que dizia. - Que astros observastes vós para fazerdes uma tão inesperada afirmação? - questionou Duarte com azedume. O mestre, ajoelhado aos pés do infante, levantou mais os olhos do que a cabeça, procurando também ajeitar os sons das cordas vocais para tons mais convincentes, disposto a vencer o cepticismo do infante. - Júpiter está atrasado e o sol pouco perceptível, descaído, incerto, explicou Guedelha, antes do meio-dia, a reunião destas condições determinam um futuro pouco auspicioso para o vosso futuro reinado. Senhor, dai-me ouvidos, não vos exponhais a uma conjuntura astrológica tão desfavorável.
 - Coisas de iluminado, exclamou Duarte, agradeço-vos a preocupação, que me parece sincera, acredito que os elementos sobrecelestes influenciam os seres inferiores, respeito a ciência astrológica, mas hoje deixai-me. Hoje não! A protecção divina é a única que neste momento respeito e confio. Não foi Deus que fez o Céu e a Terra? Como poderia eu ceder às forças que sem o Seu poder se quedam inanimadas? Não sabes que o Sol, a Lua, Marte ou Júpiter têm a vida que Deus lhes quis dar. Entendeste? Entendeste mesmo. Se aceitasse a tua proposta, isso sim, estaria a demonstrar fraqueza, desconfiança, pouco amor, e então expor-me-ia à Sua mão justa. Entendeste? Entendeste como estás a abusar dos desígnios do Senhor e da minha paciência? Sem parar , contrafeito pela insistente argumentação do mestre, Duarte prosseguiu: - Deus sabe que lhe devo veneração e lha pago com toda a devoção. Conhece-me, sou seu honesto servidor, e sabe que mereço o mando que hoje passará do meu pai para mim. Que contradição pode haver nos astros, se tenho a Sua bênção?

In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.

Cortesia de C. do Autor/JDACT