segunda-feira, 15 de julho de 2013

Poesia e Drama. Ensaio sobre a Poesia de Bernardim Ribeiro. António José Saraiva. « O Autor só considera aqui o seu caso particular, pessoal: ele, ela, outrem. Só vê interesses pessoais em jogo. O aspecto geral e filosófico do problema interessa-lhe acessoriamente...»

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«(…) Sem falar já na diferença que há entre os dois textos quanto ao ritmo, à simetria da frase, à fluência da linguagem e à energia do conceito, chamo a atenção para a ideia final de ambos eles: o termo da vida. Para o autor da Carta isso representa única e secamente um prazo:

em quanto eu vivo for.

Para um artista como Bernardim, essa ideia foi um recurso admiravelmente aproveitado, uma fuga, para prolongar e dar uma energia inesperada ao sentimento de um amor avassalante:

té de todo me acabar
vós e vossa saudade.

Enfim, uma última observação, que é estranho ninguém tenha feito até hoje: Delfim Guimarães não conseguiu encontrar na Carta um único verso ou passo igual ou semelhante a qualquer verso ou passo da obra de Bernardim Ribeiro. E o Crisfal? Com esse o caso muda de figura:
  • Há no Crisfal uns sete versos iguais a outros de Bernardim e trinta e três passos parecidos. Há em ambos os autores antíteses como mal e bem, prazer e pesar; trocadilhos, conceitos, fórmulas derivativas como vejo e verei ou amo e amarei; repetições como minhas mágoas derradeiras-minhas derradeiras mágoas, que como estribilhos musicais dão certa graça ingénua às ideias. As construções gramaticais são paralelas.
Por outro lado, revelam-se no Crisfal precisamente as qualidades que faltam na Carta: dialéctica amorosa, poder de análise psicológica, capacidade de elevação do particular ao geral, antíteses, imagens, ritmo. Veja-se, por exemplo, como a ideia da constância do amor, tão canhestramente expressa no passo atrás citado da Carta, se reflecte numa imagem impressionante da Écloga:

Pois, por mal que se guarde,
sempre será meu amor
como a sombra, em quanto eu for:
quanto vai sendo mais tarde
tanto vai sendo maior.
Est. 83.

Outro exemplo. Tanto na Carta como na Écloga é versado o tema Amor e Riqueza. Eis o que se lê na Carta:

Cuidai quanto nos quisemos,
e não vos possa mudar
dizer que vos podem dar
outrem que tenha mais que eu.
Pode ser, não nego eu;
mas bem vos posso afirmar
que não podereis achar
outrem que tanto vos queira.
Olhai que, à derradeira,
riqueza não tira dor:
pois antre ela e o amor
qual é mais pera estimar
deve ser bem de julgar.

O Autor só considera aqui o seu caso particular, pessoal: ele, ela, outrem. Só vê interesses pessoais em jogo. O aspecto geral e filosófico do problema interessa-lhe acessoriamente, num único verso:

riqueza não tira dor.

In António José Saraiva, Poesia e Drama, Estudos sobre Bernardim Ribeiro, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-477-0.

Cortesia de Gradiva/JDACT