«(…) Sem falar já na diferença que há entre os dois textos quanto ao
ritmo, à simetria da frase, à fluência da linguagem e à energia do conceito,
chamo a atenção para a ideia final de ambos eles: o termo da vida. Para o autor
da Carta
isso representa única e secamente um prazo:
em quanto eu vivo for.
Para um artista como Bernardim,
essa ideia foi um recurso admiravelmente aproveitado, uma fuga, para prolongar
e dar uma energia inesperada ao sentimento de um amor avassalante:
té de todo me acabar
vós e vossa saudade.
Enfim, uma última observação, que é estranho ninguém tenha feito até
hoje: Delfim Guimarães não conseguiu encontrar na Carta um único verso ou
passo igual ou semelhante a qualquer verso ou passo da obra de Bernardim Ribeiro.
E o Crisfal? Com esse o caso
muda de figura:
- Há no Crisfal uns sete versos iguais a outros de Bernardim e trinta e três passos parecidos. Há em ambos os autores antíteses como mal e bem, prazer e pesar; trocadilhos, conceitos, fórmulas derivativas como vejo e verei ou amo e amarei; repetições como minhas mágoas derradeiras-minhas derradeiras mágoas, que como estribilhos musicais dão certa graça ingénua às ideias. As construções gramaticais são paralelas.
Por outro lado, revelam-se no Crisfal precisamente as qualidades
que faltam na Carta: dialéctica amorosa, poder de análise psicológica,
capacidade de elevação do particular ao geral, antíteses, imagens, ritmo.
Veja-se, por exemplo, como a ideia da constância do amor, tão canhestramente
expressa no passo atrás citado da Carta, se reflecte numa imagem impressionante
da Écloga:
Pois, por mal que se guarde,
sempre será meu amor
como a sombra, em quanto eu for:
quanto vai sendo mais tarde
tanto vai sendo maior.
Est. 83.
Outro exemplo. Tanto na Carta como na Écloga é versado o tema
Amor e Riqueza. Eis o que se lê na Carta:
Cuidai quanto nos quisemos,
e não vos possa mudar
dizer que vos podem dar
outrem que tenha mais que eu.
Pode ser, não nego eu;
mas bem vos posso afirmar
que não podereis achar
outrem que tanto vos queira.
Olhai que, à derradeira,
riqueza não tira dor:
pois antre ela e o amor
qual é mais pera estimar
deve ser bem de julgar.
O Autor só considera aqui o seu caso particular, pessoal: ele, ela, outrem. Só vê interesses
pessoais em jogo. O aspecto geral e filosófico do problema interessa-lhe
acessoriamente, num único verso:
riqueza não tira dor.
In António José Saraiva, Poesia e Drama, Estudos sobre Bernardim
Ribeiro, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-477-0.
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