segunda-feira, 29 de julho de 2013

Histórias de Ler e Comer. Manuel Guimarães. «Ao contrário do que a designação de pasteleiro significa hoje, ‘os pasteleiros’ portugueses do século XVI não se dedicam ao fabrico de doçarias. Tal actividade era própria dos confeiteiros…»

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Lisboa e as antigas casas de comeres
«No primeiro dia de Abril de 1984, as preocupações dos portugueses não lhes permitiam recordar nessa data a criação, seiscentos anos antes, de uma das mais curiosas instituições da actividade laboral portuguesa, a Casa dos Vinte e Quatro.
Fundada por conta do mestre de Avis, responsável pela governação, agrupava os trabalhadores portugueses, dois de cada mester, dando lhes assento na Câmara de Lisboa, incumbidos de defender aí os interesses dos oficiais mecânicos que, nas suas humildes profissões, asseguraram serviços essenciais à população da capital. Seriam, porém, os Descobrimentos , e já em pleno século XVI os directos responsáveis pela radical transformação de tais actividades, obrigados a responder a um aumento de população e de riqueza, ao inesperado aparecimento de muitos artífices estrangeiros e à atracção da aventura ultramarina que, levando de Lisboa muitos e bons artífices, criava lugar à gente das províncias que demandavam Lisboa em busca de melhor sorte. O próprio Bandarra, poeta e sapateiro de Trancoso, lamuriava-se nas suas conhecidas trovas de não poder exercer o seu mister em Lisboa, onde seria, certamente, mais apreciado e melhor recompensado.
Ficavam lá bem longe os tempos pacatos de João I. Todos os dias surgiam novos ofícios e novos oficiais que solicitavam à Casa dos Vinte e Quatro o indispensável regimento que lhes permitisse trabalhar em paz e sossego, protegidos da cobiça dos estrangeiros, da concorrência desleal e dos menos escrupulosos, capazes de tudo pela avidez do lucro. Aos velhos carpinteiros, barqueiros, barbeiros, calceteiros e boticários depressa se juntaram os cabeleireiros, sirgueiros, peliqueiros, brunidores de holandilha e, como não podia deixar de ser, os profissionais de comes-e-bebes, com especial relevo para os pasteleiros, chocolateiros, confeiteiros e taberneiros, indispensáveis na Lisboa portuguesa de Quinhentos, que foi, infelizmente por pouco tempo, a capital do mundo.

Dos antigos pasteleiros
Ao contrário do que a designação de pasteleiro significa hoje, para nós, homens e mulheres da actualidade, os pasteleiros portugueses do século XVI não se dedicam ao fabrico de doçarias. Tal actividade era própria dos confeiteiros. Embora com actividade reconhecida desde tempos imemoráveis, só em 1554 o número de mestres pasteleiros sediados na capital justificou que se organizassem, para solicitar ao poder público regimento próprio, como têm os outros ofícios mecânicos, no que foram prontamente atendidos. Mas só muito mais tarde, em 1716, seriam admitidos na Casa dos Vinte e Quatro, onde foram anexados à bandeira dos Tecelões, embora contra a vontade dos procuradores dos mesteres e da prestigiosa instituição onde desejavam entrar a todo o custo.
Numa época de grandes e fabulosas gestas, não mereciam, naturalmente, os modestos pasteleiros atenções de cronistas, nem favores de poetas. Felizmente, a sua actividade salvou-se intacta na secura dos regimentos dos seus ofícios, peças de inestimável valor, que, desprevenidas, trazem até nós o eco fiel do dia-a-dia destes longínquos antepassados dos nossos restaurantes. Tendo como princípio fundamental da sua actividade autorizar a abertura de loja só aos mestres examinados, começaram os ditos regimentos por regulamentar os exames do ofício, fabricando à vista do júri um pastel de frangão, um pastel real, uma empada de pescada e um conjunto de pequenas unidades, cujos preços variavam entre cinco e 50 reais.
Seguia-se apertado interrogatório sobre os adubos próprios dos pastéis confeccionados com cames de vaca, porco, cervo e carneiro, tendo em conta que os temperos variavam com a época do ano, aplicando-se de modo e em quantidades diferentes ao fabrico de Verão e ao fabrico durante o Inverno. Os alunos propostos a exame pagavam 300 reais sendo portugueses, e o dobro se o não fossem. As provas eram rigorosas e pressupunham quatro anos de aprendizagem gratuita em loja de mestre examinado e, na maior parte das vezes, sob duríssimas condições. Em caso de reprovação, os candidatos podiam requerer novo exame três meses depois, sendo sempre obrigatória a prévia inscrição na Irmandade de São Marçal. Os mouriscos, que abundavam em Lisboa, não podiam ser examinados, concedendo o regimento privilégios especiais aos filhos de mestres que quisessem continuar no ofício de família.

Dos produtos e dos preços
Há 500 anos, as lojas dos pasteleiros de Lisboa primavam por uma organização a vários títulos surpreendente. Asseadas em extremo, cobriam o vão da porta com uma cortina branca, podendo, além dos pastéis, guisar e assar peixe e carne para vender ao povo. Toda a produção era obrigatoriamente vendida na loja, sendo rigorosamente proibida a venda ambulante sob pena de graves sanções, com excepção das empadas que vierem de fora da cidade e que tenham bilhete do juiz do ofício. Proibida estava também a utilização de carne de ovelha, cabra, bode ou porca, assim como a venda de empadas ou pastéis que tivessem sobrado da véspera». In Manuel Guimarães, Histórias de Ler e Comer, Vega, Lisboa, 1991, ISBN 972-699-294-X.

Cortesia de Vega/JDACT