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Um suposto enigma
«Em 1860, na Revista Contemporânea de Portugal e Brasil, foi publicada,
sob o título Martyrios obscuros, uma sentimental história de amor infeliz, cuja
assinatura se velava no segredo destas duas letras: A. A.
O facto de a Revista Contemporânea,
que nesse tempo era o mais cotado órgão das letras portuguesas, uma espécie de
olimpo para escritores consagrados, ter recebido a colaboração da pessoa a quem
aquelas duas iniciais mascaravam, já de per si mesmo dizia que essa pessoa dispunha
de méritos próprios e ainda de poderosas recomendações para entrar no cenáculo dos
plumitivos selectos. O director da Revista, Ernesto Bíester, desdenhando, ao contrário de seus irmãos, o
comércio e as finanças, tinha-se lançado na carreira literária, especialmente na
teatral, onde correu todas as aventuras inerentes à profissão de autor dramático.
Bíester não era um estilista nem um erudito, faltava-lhe espírito agudo, ilustração
extensa, vocabulário variado, mas tinha alguma educação artística, era
trabalhador fecundo e conhecia, em relação ao seu tempo, o processo de construir
peças interessantes.
Numa palavra, o teatro tornou-se-lhe
mais familiar do que qualquer outra espécie de literatura. Faz-lhe pendant em França Theodóro Barrière,
que durante trinta anos monopolizou o teatro, quase sempre com aplauso e bons lucros,
mas que nunca foi além de un bon charpentier.
O repertório de Bíester, como o de Barrière, passou, esqueceu, viveu apenas
a vida efémera de uma época.
A má língua insinuava que
Mendes Leal, cunhado de Bíester, lhe delineava e corrigia as peças: isto carecia
absolutamente de fundamento. Eu conheci Ernesto Bíester já decadente em anos e dinheiro:
magro, alto, com umas suissas grisalhas,
de corte inglês, falando pouco, fumando muito, sempre agarrado voluptuosamente a
um grande charuto e a uma grande actriz. A qual actriz era Emília Adelaide, que, durante um largo período de tempo, no teatro
de D. Maria, ceifou louros, estonteou corações e viu passar pela ante-sala do seu
camarim, almofadada de damasco amarelo, uma longa geração de férvidos admiradores.
Em França, ela teria chegado
à opulência. Em Lisboa pôde facilmente dissipar quanto ganhara. Foi ao Brasil, e
ficou lá muitos anos. Mas arranjou as coisas de modo que, além de velha, voltou
pobre, unicamente amparada pela sua reforma como antiga actriz do Normal.
A nostalgia do palco
levou-a a reaparecer na Trindade para recitar a Judia de Tomás Ribeiro. Fui ouvi-la. Pouca gente na sala. Emília Adelaide
apresentou-se com uma das suas melhores toilettes
de outrora, velha como ela. Na fisionomia os traços mais característicos estavam
apagados ou, o que era pior, deformados cruelmente. A voz perdera as inflexões quentes,
vibrantes, que foram um dos poderosos recursos teatrais da actriz. A memória falhara-lhe
a meio da recitação da Judia, que ela,
aliás, tinha dito mil vezes. Os velhos que estávamos presentes aplaudimo-la em respeito
ao passado; os novos, poucos seriam, preguntavam irónicos se era aquela a famosa
Emília Adelaide e certamente acoimavam
de ignara a geração que a tinha aclamado.
Sim, era aquela a famosa Emília Adelaide... noutro tempo. Mas
tudo já então estava fora de moda: ela mesma, a sua toilette, a sua dicção, e até, a própria Judia. Dias depois Emília Adelaide pediu-me uma conferência no teatro
de D. Maria, onde eu estava condenado a ser comissário do governo. Vi-a chegar,
comovida, com o olhar nublado, a voz trémula: que saudade dos seus longínquos triunfos lhe não despertariam aquelas
paredes... Significou-me o desejo de representar a Fernanda de Sardou para retomar o seu antigo e brilhantíssimo papel
de Clotilde. Compreendi-a, quis auxiliá-la, satisfazer o seu desejo. Mas tive de
ceder, amargurado, perante razões económicas, segundo as quais não podia ser obrigada
a companhia a ensaiar uma peça de que resultaria um desastre certo.
Ora Ernesto Bíester não se
limitou a pôr as nobres páginas da Revista Contemporânea à disposição de
A.
A. Na crónica literária que ele escrevia em todos os números, fez-lhe um
acolhimento elogioso:
- Agora a revelação. Está nos Martyrios obscuros, e vamos prová-lo. Há mais interesse, mais valia do que pensam, naquele romance tão singelo e tão sentido, que impressiona profundamente e comove deveras. Haviam de reparar que está modestamente firmado por duas iniciais. E não as adivinharam, íamos apostar. Nem é fácil, pelo que valem e pelo que escondem. Valem um grande talento e escondem uma senhora! Mas, o nome? dirá o leitor. Esse é segredo, segredo que já o elegante folhetinista da Revolução de Setembro guardou, e que o cronista da Revista Contemporânea, também guarda. Bons modelos e bons exemplos seguem-se sempre. Ambos mereceram igual e inteira confidência; um há-de ser tão digno dela como o outro foi. Tenham paciência os leitores em concederem este privilégio ao folhetinista e ao cronista, que é um privilégio do ofício, e desta vez também um privilégio da amizade.
A máscara ainda não caiu
de todo: mas está perto disso, porque já ficou reduzida ao loup, à demi-masque, que deixa
ver o mento gracioso de um rosto feminino, como nas damas do século XVII, especialmente
em Itália».
In Alberto Pimentel, Memórias do Tempo de Camilo, A. A., Companhia
Portuguesa Editora, Magalhães e Moniz Editores, Porto, 1913.
Cortesia de M e Moniz/JDACT